O Mensalão em três atos – Mensalão II: A Conquista

(Foto: Flickr/Hianna)

<< Victor Mendonça Neiva*>>

Quando ingressei na faculdade em 1994 e comecei as minhas lições introdutórias, era repetido reiteradamente que, estudando em Brasília, era inadmissível que não fosse assistir às seções do Supremo. Colegas passavam horas a relatar os debates e as artimanhas dos julgamentos naquela corte. Estudantes de todo o país faziam excursões à Brasília para conhecê-lo. Enfim, o STF era, e certamente ainda é, o grande tema dos estudantes da Universidade de Brasília.

Pois bem, e lá fui eu, já atrasado, cumprir com a minha obrigação cívico acadêmica de assistir a sessão do pleno de nossa mais alta corte. Levei minha irmã, à época secundarista e hoje procuradora federal, eis que já ressabiado com as pegadinhas que os veteranos faziam com os calouros, era melhor não ir sozinho. Deparei-me com o julgamento de uma das ações penais em que o réu era o Collor. Não era a primeira, que teve grande comoção, e, por isso, havia muitos espaços livres na sala.

À medida que se desenrolava o julgamento, passei a me imbuir da certeza  de que iam pegá-lo. Era relatado com tamanho detalhamento de provas as vantagens obtidas pelo réu e os benefícios da empreiteira que era impossível no meu entendimento de garoto inocentá-lo. E eis, que veio a surpresa: entendendo que não estava cabalmente provada a relação entre as vantagens recebidas por aquele servidor público e o favorecimento da empresa, não se poderia condenar por presunção. Improcedência da denúncia.

Saí de lá profundamente decepcionado e, minha irmã, aos prantos. Neste dia descobri que o juridiquês era um instrumento de pacificação do povo. De fato, se dito em linguagem clara e coloquial aquilo que a tonelada de brocardos latinos  e termos técnicos obscureciam, seguramente teríamos a nossa queda da Bastilha.

Depois passei a perceber que não era só a linguagem a ajudar a letargia do cidadão. Toda a parafernalha de requisitos, desde o terno e grava ou a saia até os adereços dos prédios do Judiciário, com os mármores, as estátuas de bronze e a indumentária serviam para auxiliar a letargia do cidadão, estimulando um certo acanhamento e timidez diante de tanto poder e autoridade a indicar um pretenso conhecimento superior.

Por exemplo: o propalado ato de ofício, meus senhores, nada mais é do que a exigência de um “contrato de corrupção”. Ou seja, não bastava à acusação provar que o servidor recebeu uma vantagem indevida e que quem entregou teve uma pretensão atendida do órgão. Era necessária uma prova inequívoca da ligação entre ambos.

Assim, a discussão que pela imprensa pareceu ser apenas da existência ou não de prova, na verdade, era secundária à primeira, que ficava maliciosamente escondida: o que era necessário provar. Obviamente, como estes acordos de vontades entre corrupto e corruptor normalmente se dá a portas fechadas e com intermediários obscuros (os chamados testa-de-ferro), inúmeros bandidos não puderam ser apanhados pela Justiça. Graças a tal jurisprudência do ato de ofício.

O fato é que a sociedade brasileira, passados cerca de 20 anos, amadureceu. Os meios de comunicação e o acesso à informação se tornou mais livre da sociedade. Assim, o julgamento que só poderia ser visto por quem fosse à seção ou tivesse a disposição para ler os enfadonhos e enormes acórdãos, agora é acompanhado da sala de casa. E mais, uma parte bem maior da população já tem condições de melhor deglutir o indigesto vocabulário e entender, ao menos em parte, os fatos em discussão.

Daí a evolução naquilo que espero ser a morte da jurisprudência do ato de ofício e, mais do que isso, vermos em um julgamento do Supremo contrário a toda a sua jurisprudência, mas em favor da sociedade.

Já aconteceram inúmeras vezes de o STF em um caso particular modificar o entendimento reiterado em sua jurisprudência, mas, do que me recordo, eram todas em prejuízo do cidadão ou da sociedade. Como exemplo cito a libertação do Paulo Maluf em processo relatado por Carlos Vellozo, a soltura de Salvatore Cacciola, da relatoria de Marco Aurélio e, mais recentemente, o espantoso habeas corpus de Daniel Dantas relatado por Gilmar Mendes e a assustadora súmula vinculante das algemas. Além disso, houve os casos cíveis, como o conhecimento da matéria relativa aos expurgos inflacionários do FGTS, que reduziu sobremaneira o que o governo devia aos cidadão, a greve dos petroleiros no governo FHC, a concessão de auxílio-moradia por liminar pelo então Ministro Nelson Jobim e a própria contribuição previdenciária de inativos.

Certamente, não fosse o amadurecimento da cidadania de nossa ainda infante democracia (tem apenas 24 anos se contada da Constituição de 1988), provavelmente não se veria uma alteração de jurisprudência tão significativa para a nação.

A dispensa de prova do ato de ofício é mais importante que a própria Lei da Ficha Limpa para a sociedade, pois possibilitará que criminosos antes inatingíveis pelo sistema judiciário, tenham a sua ficha sujada pela dispensa de uma exigência para a condenação que, na maioria das vezes, é inviável.

Apesar disso, ao contrário da Ficha Limpa, é cedo para dizer que esta evolução veio para ficar. Como já vimos da história do STF, nem sempre a Justiça foi a sua aliada e, utilizando o termo de um atual ministro da corte de quando Advogado Geral da União, o que temos está mais para um “manicômio judiciário” que para um Poder da República.

*Advogado, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF

O Mensalão em três atos – Mensalão I: A Gambiarra

<< Victor Mendonça Neiva*>>

Sendo o tema da moda, o propalado “Julgamento do Mensalão”, pode nos levar à ilusão de que o tema foi esgotado. Entretanto, o que vemos, na prática, é uma discussão apaixonada entre quem o acha ótimo e quem o acha uma barbaridade. É o que se apreende do cotejo entre a grande mídia, os blogs da internet e as redes sociais. Ao acessar redes sociais, nos sentimos em um estádio lotado a presenciar duas torcidas a entoar seus gritos pelo time vencedor.

Mas, se no futebol às vezes nos vemos na contingência de defender a marcação de um pênalti inexistente ou a ignorar uma tesoura voadora dentro da área, quando se trata de atos políticos, e a decisão judicial é um deles, a defesa intransigente de um dos lados pode nos levar a legitimar arbitrariedades, sejam por ação ou omissão. Nestas situações, o melhor é se tranquilizar e ter a frieza como a melhor amiga, para que possamos fazer uma avaliação crítica e independente do que está acontecendo, formando uma opinião a respeito da existência ou não de uma mudança de fato e se ela tende a se projetar no horizonte.

Buscando, na medida do possível, seguir esta estratégia, a primeira conclusão que chego é que o julgamento começou contraditório em seus próprios termos. De fato, tendo como discussão primeira o desmembramento[1], optou-se por modificar a jurisprudência pacífica até então (o que já havia sido feito quando do recebimento da denúncia) para que todos os réus fossem julgados pelo STF. Ocorre que, na mesma seção, verificando a existência de nulidade processual em relação ao empresário Carlos Alberto Quaglia, se desmembrou o feito apenas em relação a ele para assegurar que se adentrasse o julgamento de mérito.

Para que o leigo entenda, nulidade é um erro ou vício ocorrido na condução do processo que pode anulá-lo desde o momento em que ocorreu, devendo recomeçar a partir daí. Normalmente acontece quando se desrespeita o legítimo direito das partes de se manifestar e de participar no processo, formulando as provas que entendesse necessárias. No caso, não se realizou a tomada de depoimentos de testemunhas indicadas pelo réu.

Assim, logicamente, se decidido que o julgamento não deveria ser desmembrado e, portanto, analisar a conduta de todos os réus em conjunto, seria imperioso que o julgamento fosse paralisado até que corrigido o erro e ouvidas as testemunhas. Como se viu, não foi o que se deu.

Logo, ao entender que não se deveria desmembrar o processo para todos os réus e, ao mesmo tempo, desmembrá-lo em relação ao réu em que verificada a nulidade, há uma contradição inequívoca, o que podemos entender como uma “gambiarra” jurídica.

O que este fato em si revela?

Em primeiro lugar, a incapacidade operacional do Supremo de julgar ações penais. Sendo a sua natureza eminentemente de corte recursal e de verificação de constitucionalidade de atos normativos, não tem o traquejo para instrução processual e formação de provas, o que revela certa ineficiência da corte e da Justiça como um todo. É ela, fundamentalmente, a mais importante fonte de crítica ao foro privilegiado.

Em segundo lugar, que a pressão exercida pela grande mídia e por parte da população mostrou-se decisiva para que o julgamento ocorresse neste momento e que fosse espetacular. Ora, diante da realidade ineficiência operacional da corte de apreciar ações penais (o mensalão é a ação penal de n. 470 na corte, enquanto, por exemplo, os recursos extraordinários já passam de 700.000, os Habeas Corpus de 110.000, as Reclamações de 30.000 e os Mandados de Injunção de 5.000), é muito pouco provável que um julgamento desta magnitude ocorra novamente e, exceto um fator estranho, ele não teria ocorrido desta maneira.

Em terceiro lugar, parece que foi decisivo para o julgamento, a par motivos pessoais inconfessáveis de ministros, o espírito de corpo do Judiciário em não chamar pra si o papel de responsável pela impunidade no país.

De fato, imaginemos que, em um caso de tamanha repercussão, após sete anos de tramitação, os ministros tivessem que dar explicações para que o processo tivesse que voltar para a instrução para ouvir testemunhas indicadas pelas partes, sem previsão para julgamento? Ou mesmo assumindo que não têm condições operacionais de julgar processos desta complexidade e que, por isso, o caso é dividido em vários processos de acordo com o foro, privilegiado ou não, de seus réus?

Assim, apenas pela suscetibilidade da corte para a pressão exercida, o que, presumindo a reputação ilibada e o notório conhecimento jurídico de nossos reconhecidos ao menos pelos outros dois poderes da república, atribuo ao corporativismo e à preocupação com a imagem da corte e do Judiciário, o Julgamento do Mensalão não teria acontecido. Mais do que isso, do ponto de vista do Direito, seja pelo dever de motivação das decisões judiciais, que impõe a coerência como um de seus componentes essenciais, ou pela preocupação que uma corte deve ter com a isonomia de suas decisões, não se deveria julgar nestas circunstâncias.

Por outro lado, do ponto de vista político, não ignorar completamente a repercussão social de um caso tão relevante para o país, procurando não comprometer a crença nesta instituição fundamental em qualquer democracia não seria recomendável a um julgador responsável?

Este é um dilema crítico, que deixo em aberto, por não ter a sua resposta. Até porque já vi casos em que a Justiça ignorou completamente a sociedade para proferir o seu julgamento e posso dizer que não foi bom. Mas isto é tema que tratarei na próxima.


[1] Desmembramento é o que se entende pela separação do processo entre diferentes órgãos da justiça de acordo com a competência em razão da pessoa, resguardando ao Supremo o julgamento apenas daqueles réus que, nos termos da Constituição, devem ser julgador pela corte.

*Advogado, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF

Movimento de solidariedade a Cuba inaugura sede da Associação Cultural José Martí da Baixada Santista

Aproveitando o mês de homenagem ao grande revolucionário Che Guevara, o Movimento de Solidariedade a Cuba ganha uma importante força no estado de São Paulo. No próximo sábado (20 de outubro), será inaugurada a sede da Associação Cultural José Martí da Baixada Santista.

O evento contará com a presença do Cônsul cubano Lázaro Mendez Cabrera. Os presentes também poderão conferir uma exposição de trabalhos do pintor Juracy Silveira. Tudo acompanhado de boa música cubana!

Todos/as estão convidados!

Inauguração – Associação Cultural José Marti – Baixada Santista
Data: 20 de outubro, sábado
Horário: 18h
End.: Rua Joaquim Távora, 217, Santos – SP (veja mapa clicando aqui)

Para não morrer idiota!

 

<<Cléo Vieira – especial Diálogos do Sul>>

Aqui em Paris, enquanto converso com minha cabeleireira, um peruano entra para cortar o cabelo. “Nossa, parece o Chávez”, disse eu. No salão a gente diz tudo, ou quase tudo.

-Ah! O horrível ditador colombiano!, retruca o barbeiro.

Pronto, em que pese à confusão de identidade, bastou para me convencer: a mídia francesa faz lavagem cerebral ao privilegiar a crítica, senão claramente a desqualificação, quando se trata do que se passa na Venezuela. A incompreensão é demais e o método consiste em propor a França como referência.

Agora, vamos aprofundar? Assim, para o Express (7/10/12) “para obter um alojamento ou entrar na Universidade pública, é preciso ter a carta do partido de Chávez”. Depois, em certo momento, o jornal faz um rápido balanço social do governo, sem, contudo, preocupar-se em pesquisar minimamente a acusação proferida. Porque não dizer que a pessoa ouvida pelo jornalista é branca e, muito provavelmente, pertencente à oligarquia, a que votou na oposição? Por que não fazer a menor alusão à “Misión Vivienda” que tem como objetivo fornecer habitação digna a cada venezuelano, desafio de gigante, já que o déficit habitacional está estimado em mais de 2 milhões de unidades? Ou relatar que, segundo a promessa do governo, 400.000 alojamentos estão hoje em obras a que 3 milhões devem estar prontos daqui a três anos,?

Para o sério e renomado Le Monde (8/10), “Chávez esmaga os dirigentes que o cercam” (será brasileiro o jornalista que assina o artigo, Paulo Paranaguá?). O artigo “Portrait en cinq thèmes” (Retrato com cinco facetas, de 6/10) vai mais longe: “Chávez revive a herança militar em seus discursos, nos símbolos e nas instituições criadas… boina vermelha e uniforme de combate, ele adora ser chamado de ‘comandante’”. Seguramente, quanto aos símbolos externos, à aparência. Mas que instituições quase militares são essas? Tratar-se-ia dos Conselhos Comunitários, criados em 2006 para se tornarem os principais atores da política local? Eles são hoje mais de 20 mil, permitindo que 200 a 400 famílias se unam para desenvolver projetos diretamente financiados pelo poder central. Uma crítica de esquerda consequente veria neles um meio de contornar o papel do Estado e um sério risco de clientelismo e de corrupção, nos moldes das ONGs, no Brasil. O The New York Times classifica o Presidente bolivariano como “um ardoroso inimigo de longa data de Washington” sem, contudo, dignar-se esclarecer minimamente como e porque faz escola. Pudera, com seus 1.000 repórteres, suas 26 agências pelo mundo e seus 80 prêmios Politzer, o diário norte-americano merece ser imitado.

No mesmo tom superficial, o Le Monde International (8/10) destaca a declaração de um empresário: ”Os comunistas ganharam de novo, não há nada mais que se possa fazer; abandono o país, vou-me embora”. A mesma caricatura quando se diz e repete que “quem não vota em Chávez não consegue trabalho, pois ele controla tudo. Só resta emigrar”.

Evidentemente, sabemos que os problemas na Venezuela são muitos e enormes: falta de infraestrutura elétrica que ocasiona apagões gigantes; uma criminalidade que faz do país um dos mais violentos do mundo; dependência extrema da economia do petróleo, único e soberano recurso (95% das receitas de exportação e 50% do orçamento nacional), ou seja, basicamente, a economia permanece sendo a de um mercado comprador. Mas, seguramente, a França não é um modelo isento de crítica e falar de ditadura… Quanto à corrupção, a que existe no sistema financeiro de qualquer rica potência ocidental é incomparavelmente maior. Não deve o autoritarismo ser visto no contexto da Venezuela no cenário internacional?

No final, ronda uma inquietação, insistente. Para que dar-nos tanto trabalho para informar-nos sendo que, nesse ritmo, o risco é morrer idiota à vista de tanta parcialidade e dos absurdos publicados? A desinformação é grande demais e faz parte da luta de classes. O poder da mídia faz parte do poder das classes dominantes. E isso só vai mudar quando a relação de poder entre as classes mudar também. Quando isso mudará?

O mundo falava árabe, por Beatriz Bissio

Entre os destaques da literatura sulorientada, compartilhamos a obra “O mundo que falava árabe” de Beatriz Bissio, que além de ser presidente do Espaço Cultural Diálogos do Sul, é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre África, Ásia e as Relações Sul-Sul (NIEAAS/UFRJ).

Em seu livro, Beatriz apresenta o resultado de sua imersão em tal universo, iniciada nos idos dos anos 70, em especial no Líbano e na Palestina. Como bem apontado pelo professor de Árabe na Universidade de São Paulo, Mamede Mustafa Jarouche, este presente trabalho, singular no âmbito da língua portuguesa, põe em relevo dois autores no sentido mais amplo do termo: o historiador Ibn Khaldun (1332-1406) e o viajante Ibn Battuta (1304-1368). A partir dos textos destes ilustres norte-africanos, Beatriz traça o diagrama da civilização do islã clássico, ressalta Mamede.

O livro já está à disposição na Livraria da Travessa. Confira!

 

A Educação Popular Feminista e a Paz

<<Beatriz Cannabrava*>>

Não há dúvida, somos diferentes: homens e mulheres não nascem iguais. Somos macho e fêmea da espécie humana que se completam e se complementam. Ou pelo menos assim deveria ser.

No entanto, vemos que ao longo do tempo foram sendo construídos papéis diferenciados para homens e mulheres. Cores, gestos, comportamentos, atitudes, modelos do masculino e do feminino que nada têm a ver com as diferenças biológicas.

Além disso, esses papéis foram construídos sobre o mito da superioridade masculina, criando assim uma estrutura que domina, reprime e subordina a mulher. Todas as características consideradas femininas são tidas como fraquezas, defeitos, insuficiências; todas as que são consideradas masculinas, qualidades e fortalezas. E também se considera como virtudes femininas tudo aquilo que subordina e discrimina.

A educação que começa no seio da família e continua ao longo da vida na escola, nos diferentes ambientes sociais e através dos meios de comunicação continua reforçando esses papéis e padrões culturais, criando estereótipos: para o homem a autoridade, o poder de decisão, a produção de bens, o mundo exterior; para a mulher, a obrigação de obedecer, a reprodução da vida em todos os seus aspectos, o mundo interior, as quatro paredes.

Essa injusta e desigual relação entre homens e mulheres – as denominadas relações sociais de gênero – gera uma grande violência estrutural cotidiana, muitas vezes invisível, considerada “natural”, mas que muitas vezes chega aos maus tratos, à agressão, à violação e até à morte “em legítima defesa da honra” como justificam ainda algumas interpretações de leis e códigos.

Embora nas últimas décadas o movimento de mulheres tenha conquistado uma série de leis e convenções internacionais que protegem os direitos humanos das mulheres, sua aplicação é ainda muito limitada e em muitos países nem saíram do papel.

Em mais de trinta anos trabalhando em projetos de educação popular feminista pudemos comprovar que muitas mulheres ainda consideram própria de sua condição de mulher a subordinação, a opressão e o fato de ser “cidadã de segunda classe”.

O processo para chegar a compreender o caráter social do desequilíbrio nas relações de gênero é longo e difícil, mas vai se desenvolvendo na medida em que as mulheres começam a participar e a se organizar. Ao sair do seu ambiente doméstico as mulheres começam a “descobrir” a violência que se esconde atrás dessa divisão de mundo entre homens que dominam e mulheres que são dominadas.

Algumas reflexões de participantes de cursos e oficinas que coordenamos com grupos de mulheres são testemunho desse despertar.

  • “é uma violência que a mulher seja discriminada por seu sexo e que o trabalho doméstico não seja valorizado, considerado como “não trabalho”.
  •  “é uma violência que a mulher tenha menos acesso à educação e às oportunidades de trabalho”.
  •  “é uma violência que a mulher ganhe menos pelo mesmo trabalho, que esteja exposta ao assédio sexual do patrão, que seja despedida quando se casa ou fica grávida.”.
  •  “é uma violência que a mulher não possa decidir sobre seu corpo, que tenha sua sexualidade controlada e seja vista como objeto sexual”.
  •  “é uma violência a dupla jornada de trabalho e ter que assumir sozinha a responsabilidade de criar e educar os filhos”.
  •  “é uma violência que a mulher não tenha acesso à terra para cultivá-la”.
  •  “é uma violência que apanhe do companheiro e que não possa contar com apoio porque “em briga de marido e mulher não se mete a colher”
  •  “é uma violência não poder ser ela mesma, ser considerada sempre a “filha de…” “a mulher de…”, “a viúva de…”, “a mãe de…”

É a partir dessas reflexões que um processo de educação popular feminista busca trabalhar a consciência de que é preciso mudar. Que essa violência estrutural não é “natural”, que as mulheres não têm que aceitar seu destino porque são mulheres. Na medida em que se vai conhecendo como e porque foram sendo estruturadas essas relações de gênero, pode-se começar a pensar em desestruturá-las. Se for algo construído, pode-se desconstruir. Mas só a consciência não é suficiente. Temos que aprofundar a questão, organizar-nos, participar e multiplicar nosso conhecimento.

O movimento de mulheres tem se fortalecido muito nas últimas décadas, chegando a ser considerado por alguns pensadores como o movimento mais importante do século XX; e embora tenha se desenvolvido com características diferentes em distintos países, tem uma mesma proposta: lutar por uma sociedade mais justa, mais humana, onde valham os direitos de homens e mulheres, onde se respeitem as diferenças.

A chamada educação popular feminista que nasceu e vem se desenvolvendo no marco desse movimento, particularmente na América Latina, tem desempenhado um importante papel nesse contexto. Partindo do cotidiano das mulheres, re-valorizando seu espaço, seu papel reprodutivo, sua sexualidade, seu direito ao prazer, tem contribuído para que as mulheres conquistem importantes espaços no mundo do trabalho remunerado, nos sindicatos, nas associações, na política, nas instituições do estado.

É parte de sua proposta pedagógica contribuir para que as mulheres se reconheçam como seres humanos plenos, como cidadãs, e isso é fundamental na luta pela paz, pois não pode haver paz enquanto metade da humanidade for submetida a uma violência cotidiana, permitida e referendada por leis e costumes e muitas vezes consentida.

A paz não é só a ausência de conflito armado. É a convivência harmoniosa e sem preconceitos entre os seres humanos, entre homens e mulheres, entre pessoas diferentes, mas que se respeitam.

O grande desafio da luta pela paz não é apenas denunciar a guerra, a fome, a exploração, a corrupção, a destruição do meio ambiente, mas ir além. Nesse sentido as mulheres têm no feminismo uma proposta de sociedade que parte das mulheres com uma perspectiva de gênero e se articula com outros projetos que têm como eixo outras relações sociais – de classe e de etnia, por exemplo – e toma em conta as diferenças de geração, culturais, de opção sexual e educacionais.

Se chegarmos a conseguir um mundo mais justo, em que se respeitem da mesma maneira os direitos humanos de homens e mulheres, sem importar a cor da pele, a etnia, a classe social, a idade, a crença religiosa, a opção sexual, então, sim, teremos PAZ.

 

*Associada-educadora e fundadora da Rede Mulher de Educação. Conselheira Consultiva e fundadora da REPEM – Red de Educación Popular entre Mujeres de América Latina y el Caribe. Diretora adjunta e fundadora da Associação de Mulheres pela Paz  – Conselheira do Espaço Cultural  Diálogos do Sul

Bairro 23 de Enero recebe Chávez com “arsenal de carinho para semear a Pátria”

Multidão espera Chávez no bairro 23 de Enero/ Foto: Leonardo Wexell Severo

Aos poucos vão chegando. Os sorrisos brotam e a emoção toma conta em um êxtase coletivo no populoso e revolucionário bairro de Caracas, no 23 de Enero. O sentimento de irmandade e de autoconfiança vai cativando, deixando impregnada cada flor ostentada como tributo ao comandante que semeou programas sociais, por aqui chamados “missões”.

<<Leonardo Wexell Severo e Vanessa Silva, de Caracas-Venezuela, publicado originalmente no blog ComunicaSul>>

Yeisa Rodriguez, analista de uma corretora de seguros

Sorriso confiante, com brincos estampando a figura de Chávez, Yeisa Rodriguez deu seu primeiro voto ao presidente. “Graças ao meu comandante, este país agora é outro. O programa de inclusão universitária nos abriu portas. Progredir não é mais um sonho, e sim uma realidade.” Sua mãe lhe impulsionou os primeiros passos no chavismo, reforçado pelos substanciais investimentos realizados pelo Estado venezuelano na área social que lhe possibilitaram entrar na faculdade (o país é hoje o quinto em número de matrículas universitárias no mundo).

“Pela vida, pelo amor, que de teu voto nasça uma flor”, diz o cartaz segurado por uma jovem. Ao fundo, a música do cantor e compositor Ali Primera, ícone de várias gerações de venezuelanos que se levantaram pela redenção da Pátria, impregna o ambiente: “Busquem o sol maravilhoso da libertação”. A mensagem ecoa. Reverbera. Nos comove por dentro. Um refrão que viola a cartilha dos neoliberais, e que embala um governo que está utilizando o lago petrolífero que banha o país para impulsionar o desenvolvimento com justiça social.

Um cântico que é um chamado à luta, à negação do individualismo exacerbado, da lógica do agachamento às determinações do FMI e do Banco Mundial, do servilismo ao sistema financeiro e às transnacionais. Um hino à solidariedade, ao humanismo e ao latino-americanismo, valores que se confrontam a tudo o que significa a candidatura do oposicionista Capriles.

Voto em família

Comunidade do 23 de Enero ressalta conquistas

No 23 de Enero, destaca Gertrudes Fuentes, que levou os netos para votar com ela – todos exibiam o mindinho manchado de tinta, como se tivessem, também eles, votado – temos diversas razões para votar em Chávez. “Temos muitas missões aqui: a missão Mercal [que garante alimentos a preços acessíveis]; a Missão Sucre [programa educacional]; a missão Amor Maior [que garante aposentadoria a idosos independentemente de terem ou não comprovada sua condição de trabalhadores]; a missão Vivienda [programa que neste ano já entregou 90% das 350 mil moradias previstas para 2012]; Madres del Barrio [para acabar com a pobreza extrema no país], Missão Cultura e Casa Equipada [para que pessoas com baixa renda possam equipar suas casas].

Emocionada, não deixou de declarar o voto. “Por 14 anos votamos no Chávez. Há 13 anos ele vem aqui votar e o povo o espera. Sabemos que ele vai ganhar porque outro presidente como ele não vamos ter nunca mais. Ele é um homem muito bom e não tanto pelo que dá a uma pessoa, mas pelo que dá ao povo, que sempre esteve miserável de tudo. Ele deve seguir sendo o presidente da Venezuela. A vida será muito melhor para todos.”

 

Amigos de Lula

Deixando de lado o batalhão de jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas que aguardava o presidente na Escola Técnica Robinsoniana Manoel Fajardo, subimos a montanha um pouco mais. Bem próximos a um grande conjunto habitacional, vários senhores aposentados degustavam sua cervejinha Polar. Identificados como brasileiros, chamados de “amigos de Lula”, rapidamente ganhamos nossas primeiras cervejas – embora em meio à lei seca – bem gelada. Logo mais uns salgadinhos para acompanhar. Na roda, com exceção de um senhor que votou por Capriles, todos os demais eram chavistas.

Morador do bairro desde os anos 1970, Hernan Hernandez, destacou que “Chávez recuperou nossa soberania e dignidade”. “Não somos mais quintal dos Estados Unidos, somos gente e não animais. Temos agora direitos, princípios, normas e leis para obedecer. Isso não existia. Chávez e Lula são dois homens que precisamos respeitar, pois lutaram por um país livre”, declarou.

“Aqui ninguém é mais do que ninguém, o povo é soberano”, emendou Jose Alejandro Mosqueda, apontando para o posto de saúde em frente, onde uma médica cubana presta atendimento “com muita atenção humana e excelente qualidade técnica”.

Único oposicionista da turma, René Alias Nene declarou seu voto na oposição por achar, “como diz a televisão, que o governo deveria investir mais no próprio país, antes de sair doando petróleo para a América Latina”. O discurso xenófobo e anti-integração de Capriles é reforçado pelos grandes conglomerados privados de comunicação, que acusam o governo de “regalar” petróleo a países como Bolívia, Cuba, Nicarágua e Uruguai. “René repete o que não é verdade. O que Chávez fez foi investir na integração com relações respeitosas, de reciprocidade, de solidariedade. Na verdade, a direita não quer a nossa unidade”, enfatizou Hernan Hernandez, garantindo uma nova rodada de cerveja aos “hermanos brasileños”.

Para Dany Fuentes, maior avanço deste governo foi na saúde

Na caminhada, algo inusitado, deparamo-nos com um estudante de medicina morador do bairro já no sexto ano da universidade, Dany Fuentes. Não por acaso, o jovem aponta como principal êxito da revolução bolivariana os avanços na educação. Acompanhado pela mãe orgulhosa, afirma que “na Venezuela tínhamos grandes índices de analfabetismo e agora não existem analfabetos. Também a Missão Vivenda é muito importante para a população. Antes, era muito deplorável”. Questionado sobre o futuro, é taxativo: “continuarei aqui e vou trabalhar na comunidade”. Demonstrando que interiorizou os valores da medicina cubana – expressados por seus mestres vindos da ilha – conclui que para ser médico, [não basta somente atender as pessoas, mas atender totalmente a comunidade. Porque ao resolver os conflitos sociais, cura-se o ser humano].

 

El comandante

Finalmente, chega o comandante, consumando a festa. Em meio a bandeiras venezuelanas, cartazes de Bolívar e grandes pichações exaltando Marx e a Comuna de Paris, Chávez registra seu voto e em seguida, exalta a reafirmação da democracia. Acompanhado pela ex-senadora colombiana e lutadora pela paz, Piedad Córdoba; pela líder indigenista guatemalteca, Rigoberta Menchú e o ator estadunidense, Danny Glover, o presidente disse ter a certeza de que “os líderes de todos os setores [da situação e da oposição] estarão à altura da lição que está dando o povo venezuelano. Como disse Jimmy Carter, esse é o melhor sistema do mundo. Nossa América amadureceu” E ressaltando a importância da integração latino-americana, pontuou: “estamos fazendo um chamado para a consolidação como uma zona de paz com a Unasul e a Celac. Estou muito feliz neste dia de paz, de festa e democracia”.

 

Multidão vermelha transborda de amor as ruas de Caracas: “Chávez coração do povo”

<<Leonardo Wexell Severo e Vanessa Silva, de Caracas-Venezuela, publicado originalmente no blog ComunicaSul>>

“Sim, podemos ajudar o mundo/ mudar a história em um segundo/ a ajuda te fará crescer/ teu coração é bom/ se és um líder da vida/ mudar o mundo é alegria/ está na moda fazer o bem/ eu não sou Deus para te dizer o que fazer/ o que sei é que juntos vamos vencer/ e vamos salvar o mundo/ vive a tua vida/ dê a ela alegria/ escute bem o que estou dizendo/ sem barreiras ao sentimento, Chávez coração do povo”.

A música símbolo da campanha à reeleição de Hugo Chávez à presidência da Venezuela embalou a multidão que tomou completamente a Avenida Bolívar e transbordou de compromisso e alegria suas principais vias de acesso na tarde desta quinta-feira (4). Mas foi exaltando a bravura do povo venezuelano que Chávez entrou no palco. Entoando o hino da Venezuela cantado à lapela e com um coral de centenas de milhares de pessoas que lotaram sete avenidas de Caracas: Bolívar, Universidad, México, Lecuna, Fuerzas Armadas, Urdaneta e Baralt, Chávez conseguiu realizar uma mobilização jamais vista em termos de quantidade de manifestantes neste espaço, visivelmente superando mobilização feita por Henrique Capriles no domingo, em seu último comício na capital.

Exaltando o bom combate pelo humanismo e a solidariedade, a contagiante festa logo foi convertida em carnaval, com o vermelho vencendo o cinza das nuvens que trouxe a chuva implacável. Apesar do boato feito pela oposição de que a militância bolivariana estaria sendo paga para comparecer ao comício, na rua era possível ver a alegria de um povo que acredita no processo de mudanças que está sendo implementado no país.

Apesar do pé d’água, efeito do “cordonazo de San Franciso” – fenômeno que, segundo a sabedoria popular venezuelana acontece no dia de São Francisco de Assis – jovens, idosos, pais e mães com crianças de colo não arredaram o pé. Afinal, estavam ali para manifestar o seu apoio ao candidato da Pátria, das missões sociais e da valorização do salário mínimo, que enfrentou o locaute petroleiro, tentativas de assassinato e toda sorte de adversidades para defender o projeto bolivariano contra os traidores, neoliberais e privatistas. A turma que se alinha de fio a pavio com a candidatura do oposicionista Capriles. Assim, lembrando o santo que abdicou de sua riqueza para servir aos pobres, Chávez minimizou o efeito da chuva: “fomos banhados pela água bendita do ‘cordonazo’ de São Francisco”.

 

Caracas se fez pequena

No alto de um dos tantos caminhões de som espalhados pelas proximidades do palanque central, em vias onde posteriormente Chávez passou, acenando e cumprimentando as pessoas, lentamente em carro aberto, pulsava a felicidade e o amor à participação política. Casais dançavam e sorriam, tendo ao fundo uma coleção de novos prédios em construção, frutos do projeto Gran Missión Vivienda e gigantescos guindastes, numa fotografia do que é a Venezuela atual.

Em contraposição ao discurso do ódio que destila a candidatura do marionete dos Estados Unidos, Henrique Capriles, em cada palavra, o líder bolivariano exortou a multidão a fortalecer o caminho do amor e da união “em defesa da Pátria”. Chávez ressaltou que unidade e mobilização são fundamentais para acelerar o desenvolvimento “e abrir os portões do futuro que conquistamos”.

O presidente resgatou a história de Guacaipuro, líder indígena que comandou as tribos teques e caracas contra o colonizador espanhol, como um dos símbolos da determinação dos venezuelanos de não se submeter: “graças a Deus, graças a vocês, esta batalha contra a dominação tem mais de 500 anos. Todos somos Guacaipuro e todos ecoamos seu grito de guerra contra o império espanhol. Temos raízes na resistência aborígene, indígena e negra, que impulsionam a luta dos explorados de sempre em defesa de uma terra de homens e mulheres livres”, acrescentou.

Lembrando a trajetória de combate dos primeiros patriotas contra o colonialismo, Chávez ressaltou que o povo venezuelano honrará sua trajetória nas urnas, no próximo domingo, 7 de outubro. “Somos resultado de uma longa jornada. Somos os filhos das colunas guerrilheiras, seu coração e seus braços. Somos os filhos de 4 de fevereiro [data do levante popular contra o desgoverno de Carlos Andrés Perez. Somos os filhos de 500 anos de batalha e de luta pela libertação”, disse.

“Saímos de uma morte coletiva e agora que a Venezuela ressuscitou e a Pátria vive. Não vamos permitir que voltem a aniquilar o nosso país. Nas nossas mãos não se perderá a vida da Pátria. Meu próximo governo inicia já no próximo 8 de outubro”, exaltou, levando a multidão ao delírio.

Embora seja um lago de petróleo inundado por petrodólares, lembrou Chávez, a Venezuela era um país faminto, onde o povo não tinha emprego, salário decente, educação nem moradia digna. “Nós baixamos o desemprego de 20% para 7% e vamos, em seis anos, garantir o pleno emprego. Nós construímos 22 universidades públicas nos últimos dez anos e vamos criar mais 10 nos próximos seis. Somos o quinto país com mais universitários matriculados no mundo e caminhamos para ser o primeiro”, acrescentou.

 

Contra o imperialismo

Há 13 anos comandando a revolução bolivariana,Chávez faz uma autocrítica do processo que vem sendo consolidado por ele: “tenho cometido erros, mas quem não erra?”, perguntou, para logo emendar: “mas falhei com vocês no 4 de fevereiro? – quando arriscou sua vida em defesa do povo venezuelano – Falhei quando enfrentei a prisão? Por acaso Chávez se vendeu à burguesia? Se dobrou ao imperialismo?”, questionou o presidente, com a multidão respondendo em coro: “Não”.

Em meio a um mar de aplausos, sorrisos e lágrimas, o presidente encerrou o ato convocando a todos a trabalharem como “formiguinhas para que não fique ninguém sem votar no domingo”. Diante da magnitude do enfrentamento com a reação de direita pró-EUA e seus conglomerados midiáticos, o presidente venezuelano exortou a militância chavista do Comando Carabobo – mesmo nome da batalha decisiva que abriu caminho à derrota definitiva do exército espanhol – a não se deixar tentar pelo triunfalismo.

Como o voto não é obrigatório, o dirigente bolivariano conclamou aos venezuelanos para que se mobilizem a fim de que haja “uma avalanche de votos” e se esmague qualquer tentativa contra a democracia no país. “Viva a Venezuela! Viva Bolívar! Até a vitória sempre”, concluiu.

Megaron, a Avó do Mundo e a Convenção 169 da OIT

Megaron e Raoni

<<Eliane Potiguara*>>

Megaron, sobrinho de Raoni contemplava infinitamente o céu e com seus olhos de águia penetrava o universo como quem busca o ponto certo e focal, a definição de uma resposta aos problemas sociais, políticos, étnicos e existenciais dos Povos Indígenas atrelados pela linha da vida e a linha dos clãs do povo xinguano escolhido propositalmente pelo Universo para fazer acontecer as mudanças que precisam acontecer na Terra.

O comando estrelar unido à força das luas crescente e cheia foram captados pelo guerreiro xinguano e seu povo, e ajudado pela força da avó ou mãe do mundo, da mulher que não precisa estar presente em nada ou em nenhum lugar porque ela já está em todos os lugares em alma e força espiritual. Ela está viva no espírito, coração, cultura e língua dos guerreiros e guerreiras para que ela possa fazer exercer e abastecer a grande transformação, que virá cedo ou tarde.

É só ouvi-la e para os mais sensitivos senti-la ou vê-la através dos tempos e da história. É a mulher que percorre por debaixo dos leitos dos rios, é a mulher que cria o leite quente para saciar a fome dos desesperados e despossuídos. É a mulher que ao mesmo tempo nasce, morre e nasce de novo para perpetuar as gerações indígenas deste país. É a mulher que possui o casco duro nos pés pelas andanças! É a mulher, cuja voz ecoa no passado e no presente!

No norte do planeta, montados a cavalo e montados à Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e à Declaração Universal dos Direitos Indígenas entre outros instrumentos jurídicos, olhares de lince e cabelos negros bisbilhotam ações dos governos e tratados.

Esses instrumentos jurídicos foram trabalhados arduamente por guardiões do fogo criativo e assimilados por líderes políticos que convocam Assembléias para que esse “ tempo” utilizado pelos ancestrais não seja desperdiçado pelo descrédito. As famílias espirituais da flora, fauna, mares, rios, cachoeiras, montanhas, serras, morros, cavernas, vales, seres encantados e animais do céu, das águas e das terras e de todas as espécies, enfim toda a biodiversidade da Tera escolheram a dedo os líderes indígenas pontuais e geográficos para assegurarem as leis que definem, garantem e fortalecem a política dos povos indígenas do Brasil e do mundo. Um homem jovem sentado em seu barco _ora em seu cavalo e ora em seu jumento_ proseia em suas preces e é abençoado pela Mãe Terra.  É a Pachamama para os meso e sulamericanos, a mãe natureza, as benzedeiras, as curandeiras e pajés disfarçadas pelo grande poder estrelar cósmico da categoria “indígenas”.

Povos indígenas! Sigam os sinais que são apresentados para a fortaleza futura e garantir a cultura e espiritualidade.Farejam como animais! Unam-se fortes pelo objetivo único comunitário: nações, grupos, etnias ou comunidades com ou sem Rio+20. Só existe um inimigo: aquele que não deseja ver a sua prole prosperar. Na fé e confiança ouçam a voz que sai das entranhas da Terra. “Eu moro, miro e admiro encima de uma copa de árvore robusta numa casa branca iluminada pela luz eterna a querer o reflorestamento da Terra. Ali faço ninho com as irradiações das luas crescente e cheia, e recebo ordens do comando estrelar”, diz a avó do mundo disfarçada em pajé, aquela que anda por baixo do leito dos rios e espia o mundo. Ela diz: “Aquele que crê em mim ajudará na evolução de uma nova mentalidade da juventude indígena”. Dizem que ela é uma bruxa! Ela é apenas a “mulher que sabe”, a que possui o olhar desconfiado das sábias! Megaron continua a olhar para o infinito e a sentir as evocações do espaço.

Eliane Potiguara é escritora indígena.

Foi indicada em 2005  ao Projeto Internacional “Mil mulheres ao Prêmio Nobel da Paz”, é escritora, poeta, professora, formada em Letras (Português-Literatura) e Educação, indígena Potiguara, brasileira,  fundadora do GRUMIN / Grupo Mulher-Educação Indígena. Membro do Inbrapi, Nearin, Comitê Intertribal, Ashoka (empreendedores sociais), Associação pela Paz, Cônsul de Poetas Del Mundo e Embaixadora da Paz, pelo círculo da Fança.

Trabalhou pela Declaração Universal dos Direitos Indígenas na ONU em Genebra. Escreveu “METADE CARA, METADE MÁSCARA”, pela Global Editora.E seu último livro é “O COCO QUE GUARDAVA A NOITE”, editora Mundo Mirim.Ganhou o Prêmio literário do PEN CLUB da Inglaterra e do Fundo Livre de Expressão, USA.

Renunciar a violência para mostrar a boa vontade

(Foto: Ragnar Jensen – ragnar1984/Flickr)

<<Oscar Arias Sánchez*>>

Por mais desolador que pareça, o relato de nossa espécie tem sido escrito com ênfase na violência. Temos medido o passar dos anos com o calendário da força. Pouco são os episódios de conciliação entre todos os seres humanos. Poucas são as épocas de harmonia e fraternidade. No vasto repertório das vivências humanas, raras vezes temos permitido uma oportunidade para a paz duradoura.

A história humana pode ser lida como a tensão entre duas forças, entre o poder dos falcões e das pombas da política. Ao ritmo desse pêndulo temos escrito as passagens mais cruciais da nossa vida coletiva. Há 25 anos, esse pêndulo se inclinou do lado da paz na América Central e pôs fim a 30 anos de enfrentamentos bélicos.

Que características distinguiram nossa história da de tantos outros que também sofrem a dor de um conflito armado? Quanto influenciou o contexto, o momento, os atores ou a sorte na produção do resultado? As circunstâncias que antecederam a assinatura do Plano de Paz são bem conhecidas. Os números de mortos e feridos, desajustados e desaparecidos, povoam as prateleiras das bibliotecas. Mas, há tanto que os dados não coletam! Tanto que desaparece da contagem oficial! Há algo intangível na dor de uma guerra, algo que envenena o ar com a angústia e a consciência insuportável da morte.

O Plano de Paz nasceu no meio deste novelo de frustrações, após o fracasso final dos processos de mediação de alguns governos latino-americanos. Nossas probabilidades de êxito têm a ver com o que, com quem, quando e em que condições o assinamos.

O que assinamos? O Plano de Paz é um documento curto e preciso. Tem como único propósito alcançar a paz e a democracia na região, e não se detém aos detalhes operacionais. Quando existem várias partes em uma negociação, com interesses distintos e frequentemente contraditórios, é vital definir a meta e reduzir o ruído, porque cada parte representa suas contrapropostas e pretende implementar a sua própria agenda.

O grande mérito do Plano de Paz não foi ter sido um documento ideal, e sim ter sido um documento possível, que garantia sua própria sobrevivência ao exigir que as nações celebrassem eleições livres, aperfeiçoando suas instituições democráticas.

Quem assinou? A pesar da pressão de Washington para excluir a Nicarágua das negociações, o Plano de Paz incluiu desde seu princípio o governo de Managua, porque não é possível conduzir uma negociação bem sucedida se não se encontrarem presentes os legítimos interlocutores de um conflito; assim, foi assinado por todos os governos centro-americanos.

Enfrentamos enormes pressões por parte do governo do presidente Ronald Reagan e dos regimes de Mijaíl Gorbachov e Fidel Castro. Porém, defendemos nossa vontade. Não somente porque era nossa, mas porque nenhuma guerra ideológica justifica a morte de pessoas inocentes. Unicamente os signatários decidimos a paz, porque, enquanto um líder deve rodear-se de opiniões, deve escutar argumentos e estudar a crítica, ao final do dia deve decidir em exclusivo com sua consciência.

Quando assinamos? Ao apresentar meu Plano de Paz aos presidentes centro-americanos, compreendi que o tempo corria contra nós. As potências mundiais pressionavam por redobrar a presença militar, enquanto a paciência internacional se esgotava, produto da frustração e desgaste. Ao reunirmos na cidade de Guatemala, em agosto de 87, de alguma maneira entendemos que aquela seria nossa única oportunidade. Saber isto, sentir que a vida de milhões de centro-americanos estava atada ao desígnio de umas poucas horas, nos deu a força que necessitávamos. Desde o momento em que apresentei o Plano de Paz, até o dia em que assinamos, transcorreu pouco mais de meio ano. Por ter dado tempo ao diálogo, talvez pudéssemos terminar rendidos.

A lógica do Plano de Paz era exigir o cessar fogo como condição para dialogar. Renunciar a violência para demonstrar boa vontade. Assim, firmamos um acordo que transformou a vida de milhões de seres humanos. Oxalá os líderes do mundo se atrevam a renunciar a violência como ficha do jogo. Quem sabe se surpreendam da autoridade que tem a palavra desarmada. Quem sabe se assombrem em saber o quanto pode fazer uma pessoa quando tem do seu lado nada mais do que a razão e a verdade.

“A história é um pesadelo do qual tento acordar”, dizia o herói de Ulisses de James Joyce. Durante muitos anos, a humanidade tem tentado levantar-se de um pesadelo de guerra. A violência que alimentou os mitos e inspirou epopeias segue ditando a saga do mundo. Prontamente e com muita frequência, baixamos os braços, miramos e damos a ordem de fogo. Todavia, não há escrito um destino de dor para o homem. Nada há ditado, ainda, para as páginas futuras desta descendência deslumbrante, que até então em meio as armas, é capaz de amar e perdoar, capaz de construir e imaginar.

Os últimos 25 anos na América Central tem sido um instante de quietude, um momento em silêncio à beira-mar. Mas por este momento, por essa quietude, vale a pena viver e lutar. Por fazer da paz a opção principal. Por fazer do diálogo a única saída. Por fazer dos próximos séculos, o final do contínuo pesadelo.

 

* Ex-presidente da Costa Rica 1986-1990/2006-2010 e Prêmio Nobel da Paz 1987

(Texto publicado originalmente em IPS, tradução Diálogos do Sul)