Rosemberg Cariry*
Caro Jorge Sanjinés, temos muitos amigos em comum, mas nunca nos encontramos,
embora nossos destinos já tenham se cruzado em muitas oportunidades, pelos
caminhos e descaminhos da América Latina e do Caribe.
Escrevo-lhe imbuído de um sentimento provocado por um acontecimento
trágico e de grande gravidade, que mexeu profundamente com os meus valores
e horizontes de mundo.
Antes de tudo, quero lhe dizer da admiração profunda
que tenho pelo seu país e do imenso respeito que tenho pelo seu povo.
Por essa razão, necessito pedir perdão ao povo boliviano.
Saiba o companheiro de cinema e de lutas libertárias que, de todos
os países da América do Sul, sempre tive um especial afeição pela Bolívia,
não pela sua pobreza de terra durantes séculos saqueada em suas riquezas
naturais; não pelas civilizações autóctones destroçadas em suas grandezas
e glórias; não pela sua tragédia colonial e os seus milhões de mortos, que
foram devorados pelo engenho de moer gente e de produzir riquezas para a
Europa; não pelos seus tesouros culturais e espirituais saqueados que hoje
ornam museus de todo o mundo; não pela Pátria traída pelos golpes militares
truculentos e a entrega das riquezas nacionais ao grande capital
internacional.
Estas tragédias, estas feridas expostas, estas veias
abertas, como bem o sabemos, poderiam compor a história de qualquer
país do nosso continente.
E, no mais, a condição de vítima não enobrece uma nação ou um povo. O que
sempre me atraiu e fascinou na Bolívia reside na grandeza do seu povo formado
por povos originários – antigos senhores das cordilheiras, das neves, das
florestas e dos abismos, decifradores de estrelas, discípulos do sol e
devotos da lua – da sábia convivência, cooperação e respeito para com a
natureza, nos ciclos de mortes e renovações.
Amo a Bolívia em sua
singularidade e generosa contribuição às culturas do mundo. Admiro as músicas
e as culturas dos povos originários da Bolívia, os seus mistérios, as suas
lendas, as suas cores e os seus temperos. Pertinho do céu, entre nuvens e
voos plenos dos condores, La Paz é uma pérola encrustada na cordilheira-colar
que ornamenta a América do sol.
Ainda na década de noventa, considerei como sendo um significativo
acontecimento histórico, o crescimento da presença boliviana no Brasil.
Primeiramente, percebi os ponchos coloridos, as flautas andinas e os tambores,
dos grupos que se apresentavam em praças públicas e ruas das capitais. Depois,
eu os vi tocando em pequenas cidades do interior e até mesmo na romaria do
Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, ante o povo curioso e encantado pelos
sons graves e misteriosos, pela harmonia dos ritmos encantatórios. Reconhecia
ainda, sem as roupas típicas, perdidos nas multidões, aqui e ali,
alguns rostos serenos e dignos de índios bolivianos.
Um dia, eu soube que São Paulo, passara a receber centenas de milhares
de bolivianos que, fugindo da fome e da pobreza, buscavam no Brasil um novo
lar. Fiquei muito contente com aquilo e disse para mim mesmo: “Benvindos sejais,
ó filhos das cordilheiras e dos silêncios. Adentrai em nossas casa e tocai nossa
alma com a vossa sabedoria e a vossa arte, ensinai-nos a ser o que deixamos de
ser, homens em harmonia com a natureza, com o sol, com os rios e com a lua”.
Uma sombra, porém, rondava a minha alegria. Não passou muito tempo para que
eu descobrisse que esses milhares de bolivianos eram submetidos a regimes
escravos ou semiescravos, forçados a trabalhar 16 horas por dia, em condições
insalubres e inumanas, a troco de meio salário mínimo e o refúgio de poucas
horas de sono em suas habitações miseráveis.
Como vivemos numa democracia, sob um governo que se diz popular e como o espírito
da nação brasileira é decantado pela hospitalidade e solidariedade universal,
pensei que as instituições governamentais amparariam estes bolivianos, lhes daria
cidadania brasileira (mesmo para aqueles que quisessem guardar dupla nacionalidade)
e os integraria à vida brasileira com salários dignos e direitos garantidos.
Pura ilusão! Houve um ensaio dessa política, mas muito pouco foi feito. Como este
governo faria alguma coisa por estes hermanos se não faz por milhões de brasileiros
que ainda “subvivem” nas cidades e nos campos, decaídos na miséria, vítimas
de exploração e desesperança?
Todos os dias, nós lemos denúncias de brasileiros
submetidos ao trabalho escravo e as condições inumanas nos latifúndios dos
agronegócios, dos políticos desonestos, das multinacionais, que devoram a
Amazônia para plantar os desertos – que são antecipados por algum pasto para
engordar a gado e fornecer carne para exportação.
O que esperar da elite brasileira que colhe riquezas e planta desigualdades? O que
esperar de um “Estado democrático” que se impõe como legitimação do poder dos ricos,
e quando a “esquerda” e a “direita” se unem para defender os interesses do
grande capital?
Se o estado brasileiro, ante a crescente violência e a instabilidade,
não consegue oferecer segurança, saúde e educação digna aos seus próprios cidadãos,
como poderia amparar e proteger os novos hermanos bolivianos? Não, o Estado brasileiro
não abriga, nem protege os bolivianos, assim como não abriga e nem protege os
africanos, os haitianos, os asiáticos ou gente pobre de qualquer nação que por aqui
aporta, em busca da tão apregoada hospitalidade e alma gentil brasileira. Assim
como os outros imigrantes pobres, os bolivianos foram entregues à própria sorte,
jogados nos subterrâneos de São Paulo, nas garras de um capitalismo abjeto, entregue
à sanha das máfias, das gangues e dos empresários neoescravagistas.
A própria
imprensa começa a insuflar em algum segmento de classe média mal pensante uma
onda (ainda envergonhada) de xenofobia, que encontra maior expressão e virulência
nas hordas de skinheads e neonazistas que vagam impunes nas periferias das
grandes cidades.
O Brasil vive a sua guerra civil, com centenas de mortos diários, com uma polícia
recrutada nas favelas e nos sertões para matar favelados, camponeses e
trabalhadores da periferia dos grandes centros urbanos, assim como batem com
truculência e chegam a matar índios e camponeses sem terra. Pobre Brasil nesta
guerra inglória de pobres contra pobres, de negros contra negros, de negros
contra índios, de brancos contra mulatos, de miseráveis contra miseráveis.
Enquanto isso, os ricos, financiados com o dinheiro gerado pelo trabalho do
povo, nas suas fortalezas e casamatas, cercam-se de cães policiais e de câmera
vigilantes. Os mais ricos entre os ricos, simplesmente, vão morar em Miami ou
Paris, enquanto continuam a explorar o suor alheio e a pisotear a decência humana.
Nós, que aqui permanecemos, somos incitados a nos acostumar com o odor da morte
e com a violência mais abjeta. Mas, uma submissão desta ordem seria amortecer
em nossas almas a dignidade e compaixão que nos faz humanos.
Há poucos dias, assistindo a um noticiário, de um destes jornais televisivos,
onde jorra sangue das palavras e o fascismo espirra pelos poros, uma notícia
tocou a minha alma de uma forma profunda e inexorável. Aconteceu na periferia
de São Paulo. Três assaltantes entraram na casa de um pobre boliviano – que havia
seis meses chegara no Brasil e trabalhava em condições semiescravas em uma
confecção – e exigiram tudo o que aquela família conseguira amealhar em dias
e noites, feriados e dias santos de trabalho. Brayan Yanarico Capcha, de 5 anos
anos de idade, estava entretido desenhando em pequenos pedaços de papel os
convites do seu aniversário que aconteceria dentro de mais alguns dias. Durante
os seis meses de estadia no Brasil, ele economizara centavo por centavo e dera
aos pais três possiblidades de presente: um carrinho, um boneco do Pica-Pau ou
um roupinha nova.
O sonho foi interrompido da forma mais brutal. Os pais de Brayan Yanarico Capcha,
Veronica Capcha Mamani (24 anos) e a Edberto Yanarico Quiuchaca (28 anos),
entregaram aos assaltantes todas as suas economias – R$ 4.500,00 (quatro mil
e quinhentos reais) reais, economizados do pão, da roupa e da energia, no miserável
tugúrio. O pequeno, tremendo de medo, vendo os pais ameaçados, sob a mira dos
revólveres, ainda encontrou forças, para retirar de uma pequena caixa de papelão
algumas poucas moedas que guardara, para a festa de aniversário e, chorando,
ofereceu-as aos criminosos.
Indiferentes, eles vociferavam e batiam em seus pais,
querendo mais dinheiro, possessos de fúria e imersos em sombras. O pequeno
ajoelhou-se e, em português mal falado (era ele quem fazia um grande esforço
de aprender o português para ensinar aos pais), pediu que não os matasse e
depois se aninhou chorando nos braços da mãe (doce refúgio ante a maldade dos
homens). Irritados com o rogo choroso da criança que pedia pela vida e dizia que
queria voltar para a Bolívia, um dos assaltantes, a sangue frio, atirou na cabeça
de Brayan Yanarico Capcha, encharcando de sangue o vestido da mãe. Ai, que
desmedida dor! Alguém pode me dizer a diferença entre a dor desta mãe e a dor
de Maria, ao ver descer da cruz o seu filho morto?
O filho de Maria era divino
Brayan Yanarico Capcha era apenas uma pobre criança boliviana, sem direitos, sem
escola e sem nenhuma proteção do estado brasileiro. Um criança alegre que, apesar
de toda a pobreza, sonhava com um correr no parque, brincar no carrossel e chupar
um pirulito.
Não deixaram que ele realizasse nenhum dos seus pequenos e preciosos sonhos.
E já não há quem possa medir tão incomensurável dor. Um crime como este transborda
os anais da criminalidade cotidiana e ordinária e inscreve-se como símbolo de
um tempo e de um mundo que se desencanta em dor, em miséria, em destruição, em
brutalidade e em barbárie.
Perdoe-nos Veronica e Edberto, se possível, em nome do seu filho mártir, por não
o termos protegido e acalentado o seu pequeno sonho. Desculpe-nos por não ter-lhes
avisado que o Brasil não é nenhum paraíso. A tiro de revólveres, golpes de picaretas,
facadas, bombas de gás lacrimogênios e fogo ateado em corpos de inocentes, estamos
destruindo o que tem restado em nós de esperança no amanhã.
Neste país, hoje dominado por uma lógica perversa de mercado e de exclusão, muito
pouco se acredita no sonho, no amor, na esperança, na poesia, na solidariedade, na
amizade… Estas palavras são vãs, diante da fúria absurda de alguns homens a serviço
do grande capital e dos banqueiros criminosos que devoram corações e mentes, vidas e humanidades.
Impediram o pequeno Brayan Yanarico Capcha de alcançar o futuro, mas não vão conseguir
calar o significado mais profundo da sua voz. O gesto desta criança pobre, oferecendo
as moedas que guardara para a festa do seu aniversário, em troca da vida dos pais,
amplificou-se na minha alma e na alma de milhares de pessoas, do Brasil e de todo o
mundo. Nunca antes, nos meus sessenta anos de vida, uma voz e um gesto haviam me
tocado de forma tão intensa, profunda e dolorosa.
Pela voz de Brayan Yanarico Capcha, falavam todas as crianças pobres do Brasil,
abandonadas nas ruas ou assassinadas pelo tráfico; falavam todas as crianças
indígenas trucidadas pelos latifúndios e pelo agronegócio, pelas madeireiras e
pelas mineradoras, ante a indiferença do governo brasileiro, em um genocídio
sem fim. Pela voz de Brayan Yanarico Capcha falavam as crianças que padeceram
de fome e sede nas secas periódicas; falavam as meninas violentadas e prostituídas
nas estradas, nos garimpos e nas cidades turísticas; falavam as crianças palestinas aprisionadas e torturadas; falavam as crianças africanas mamando o leite inexistente
nos seios da mães magras e semimortas.
Pela pequena boca de Brayan Yanarico Capcha
falava a humanidade, despertando-nos, antes que venhamos a perder para sempre o que
nos resta de dignidade e de humanismo.
Soubemos que Brayan Yanarico Capcha voltou para a Bolívia em um pequeno caixão e
foi sepultado no cemitério do pequeno povoado de Tacamara, a 100 km de La Paz.
Por favor, caro Jorge Sanjinés, vá até este povoado e, no cemitério, sob a tumba
de Brayan Yanarico Capcha, deposite uma rosa branca, como símbolo da esperança e
do perdão que pedimos. Transmita a Veronica Capcha Mamani e a Edberto Yanarico
Quiuchaca, bem como ao povo boliviano, a gravidade e a sinceridade da nossa dor.
Da minha parte, acenderei velas para que elas iluminem as trevas deste tempo e,
depois, ficarei sentado de cócoras, como um índio boliviano, remoendo o silêncio e
a dor, perscrutando os abismos da minha própria alma e procurando resposta para uma
pergunta que me faço há anos e que nunca soube responder: Se nascemos animais, o
que nos faz ser humano? Será que nos fazemos humanos aos poucos, à medida que
construímos o espírito e a solidariedade? Ou será que, como hoje se apregoa,
o homem é apenas uma construção do mercado financeiro e do horror?
Rosemberg Cariry
Fortaleza, Ceará, Brasil – 02 de julho de 2013
(Autorizada a livre circulação deste documento)