O sonho de Kenneth Kaunda

Kenneth Kaunda

Kenneth Kaunda

Yurién Portelles*

Kenneth Kaunda, de 89 anos, caminha como se levasse consigo o peso da história africana, que ele conhece muito bem, particularmente de sua saudosa Zâmbia. O ex-presidente zambiense (1964-1991) é um velho amigo de Cuba, país que já visitou por quatro vezes e, na mais recente, recebeu a Ordem da Solidariedade, outorgada pelo Instituto Cubano de Amizade com os Povos. Ainda canta e compõe, algo desconhecido para muitos, sua vida está marcada pela luta desde a juventude pelos ideais de justiça, que o levaram a sofrer encarceramento em mais de uma oportunidade. Hoje tem um sonho para a África que confessou ao repórter em uma fresca tarde de junho em La Habana.

Quais são, em grandes rasgos, as fortalezas e as debilidades da União Africana (UA) na construção da unidade continental e para enfrentar as ameaças externas?

Entre as principais fortalezas se encontra o fato de que estamos conscientes da unidade no continente e, foi dessa maneira que nos transformamos da Organização para a Unidade Africana (OUA) para a UA, atualmente presidida por uma mulher. Esso para mim é uma grande alegria e algo que tem grande importância pelo papel que elas desempenham na nossas sociedades. Por outro lado, no continente africano, diferentes organizações integracionistas como o Mercado Comum para África do Leste e o Sul (Comesa), a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (Sadc), a Comunidade Econômica e Monetária da África Central (Cemmac), entre outras, são as bases da unidade, mas também para o fomento da cooperação econômica entre esses países.

Entre a debilidades persistentes em  primeiro lugar devemos combater a pobreza de maneira mais eficiente. Existem diferentes linhas de trabalho com e

isso objetivo mas é algo que temos que explorar o máximo possível. Temos um grande potencial nos minerais, mas até o momento não exploramos tudo o que se poderia. Devemos desenvolver a agricultura para produzir alimentos não só para o continente mas para o mundo. Falta-nos avançar muito no campo da educação e construir estabelecimento para as diferentes disciplinas a fim de poder progredir rapidamente.

Qual a sua opinião sobre os novos líderes africanos diante dos desafios que devem enfrentar diante da UA?

No início da luta em nosso continente tivemos um número de líderes importantes que foram fundamentais para a união porque deixaram grandes ensinamentos para todos, porém, agora também há líderes, como pudemos ver na recente reunião de cúpula da UA na Etiópia, prontos para se unirem e continuarem a luta. O objetivo é continuar a luta contra os inimigos comuns dos africanos e do mundo, como são a fome, a ignorância, a corrupção, o crime, as enfermidades  e, sobretudo, a exploração do homem pelo homem. E quando temos líderes jovens dispostos a vencer, então há esperança para todos.

A partir de sua visão de estrategista político, qual a importância dos processos integracionistas  nesta região como a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos e a União de Nações Sul-americanas?

Não há dúvida de que atualmente os seres humanos estão ativos na esfera da cooperação porque com isso se resolvem muitos problemas. Nesse sentido, em nosso continente existem divisões por questões de religião, como o conflito entre sunitas e xiitas. Esperamos que nossos líderes tenham disposição de se unirem paa buscar a maneira para que os povos resolvam esses conflitos. Porque se algo pode deter o desenvolvimento de um estado ou de um continente é precisamente a falta de unidade. 

Como se sente com essa homenagem outorgada por Cuba?

É esta que tenho aqui (mostra a Medalha no peito). Estou muito feliz por isso. Vindo de Cuba que já conquistou importantíssimos avanços na agricultura, engenharia, educação. Aprecio o que os cubanos têm feito por nós durante muito tempo e é lutar contra a exploração do homem, e por isso estou feliz com esse reconhecimento. Ambos os países lutamos pela independência em seu momento e agora o fazemos pelo bem estar de nossos povos. Fidel Castro, é líder histórico da Revolução Cubana, um homem que compreendeu o mundo de uma maneira muito própria, tal como Kenneth Kaunda. Ambos encontramos algo em comum: lutar contra a exploração do homem onde quer que exista, e isso é o que vimos fazendo. Durante muito tempo Cuba nos ajudou e atualmente colabora com África para conquistar a instrução e a educação de seus habitantes. Por isso estou feliz por este reconhecimento.

Qual o sonho de Kaunda para África?

Desde minha posição mais humilde, meu sonho para a África é a esperança. Continuar crescendo, desenvolvendo. Sem dúvida temos muitos problemas, mas se resolverão pouco a pouco e seja no norte ou no sul, continuaremos em frente.

*Prensa Latina de La Habana para Diálogos do Sul

Cuba contribui para o desenvolvimento biofarmacêutico do Equador

labiofam Nuriem de Armas * 

Cuba trabalha com o Equador no desenvolvimento e produção de controladores biológicos e na transferência de tecnologia para implantar uma indústria biofarmacêutica nesta nação.

O programa de controle biológico de vetores de Labiofam, grupo empresarial de Cuba, avança com êxito no Equador, desde o ano passado, com o objetivo de controlar doenças de alta incidência, sobretudo nas zonas costeiras, relatou a Prensa Latina o diretor de produção dessa entidade, Yosbani Pupo.

Disse que este programa começou a ser desenvolvido em sete cidades de cinco províncias costeiras desta nação sul-americana. Atualmente estamos com 80 especialistas de Labiofam e 1.300 trabalhadores locais, atendendo quase 350 mil moradias, esclareceu.

O plano de erradicação destes vetores se realiza com o Bactivec, que é um biolarvicida inócuo para o ser humano e para o meio ambiente, com mais de 30 anos de utilização em Cuba e em países do primeiro mundo, relatou o funcionário.

Acrescentou que, com este produto, o vetor é 100% controlado.

Também relatou que se contribuiu para a cultura do controle de vetores junto à população equatoriana, na medida em que se mantém a higiene e se evita o que possa vir a ser um foco infeccioso ou criadouros de mosquitos transmissores de doenças.

Este programa é também comunitário, pois os cidadãos já conhecem o manejo do produto e o aplicam eles mesmos em suas casas, disse, acrescentando que há participação cidadã no reordenamento social para não dar condições de proliferação ao mosquito.

Informou que os produtos de Labiofam têm uso amplo em países da Ásia, América Latina e África, e que, neste último continente, em programas similares com resultados reconhecidos, especialmente pelo controle da malária.

Disse que a Organização Mundial da Saúde (OMS) apoiou esses resultados, assim como a Organização Panamericana da Saúde (OPS).

Segundo Pupo, a Europa utiliza estas tecnologias há mais de 35 anos, mas comercializou, na América Latina e na África, produtos químicos.

Com Labiofam, há 20 anos, entramos no mercado e pouco a pouco chegamos a países como Angola, Etiópia, Guiné Equatorial, Tanzânia, Gana e Nigéria, onde na erradicação da malária os resultados são extraordinários, reconhecidos em distintos níveis na arena internacional.

A OMS propôs estender o uso dos biolarvicidas cubanos para várias regiões do mundo, disse, pois no primeiro mundo existem milhões de pobres que padecem de enfermidades transmitidas por vetores.

Cooperação e solidariedade

A vontade do Equador e de Cuba, como parte da solidariedade e da cooperação, é, por meio de Labiofam, desenvolver aqui projetos sem fins lucrativos de colaboração, afirmou o funcionário.

E por isso o Estado cubano tomou a decisão de transferir tecnologia para o Equador, como parte do apoio ao projeto da Revolução Cidadã, onde se procura mudar a matriz produtiva, para a independência na região, a autogestão e o fortalecimento do país, acrescentou.

Cuba propõe a construção de laboratórios biológicos farmacêuticos para que o Equador possa produzir vários produtos, como os biolarvicidas, disse.

Mais de 50 tecnologias poderiam ser transferidas a esta nação sulamericana, como a dos biofertilizantes, bioestimulantes, biopraguicidas, para uso da agricultura.

De acordo com o previsto, uma fábrica seria construída na província dos Ríos, em conjunto com o Ministério da Agricultura, relatou, enfatizando que seria a transferência de um conhecimento que Cuba levou 50 anos para alcançar.

O governo equatoriano pretende implementar este projeto nos próximos dois anos.

Como parte da estratégia, trabalha-se atualmente nos estudos de viabilidade e de mercado para instalar aqui outra fábrica para a produção industrial de 150 medicamentos de uso veterinário injetáveis e externos, 33 tipos de vacinas, 21 virais e 12 bacterianas, e 15 meios de diagnósticos, informou o executivo.

Estes planos são passos sólidos de cooperação estratégica de ambos governos, projetos entre dois povos irmãos, assegurou.

* Prensa Latina de Quito, Equador, para Diálogos do Sul

 

A medicina cubana na Argélia

Djelfa, importante capital de província com cerca de um milhão e 200 mil habitantes.

Djelfa, importante capital de província com cerca de um milhão e 200 mil habitantes.

Carmen Esquivel * 

Climas contrastantes como invernos muito frios e úmidos, e verões secos e áridos caracterizam Djelfa, uma província situada a 300 quilômetros ao sul da capital argelina, onde funciona desde 2008 um hospital oftalmológico com pessoal médico cubano.

Amizade Argélia Cuba é o nome do moderno centro, fruto da cooperação entre os dois países, que atende gratuitamente a população, não só dessa região, como também de muitas outras partes do país.

“Praticamente oferecemos todos os serviços e especialidades, desde oftalmologia geral até cataratas, glaucoma, oftalmologia pediátrica, retina, neuroftalmologia, córnea e refrativa, oculoplástica, entre outras”, explicou a Prensa Latina o diretor do centro, Osvaldo Tamayo.

O hospital conta também com uma unidade de urgências que funciona durante as 24 horas do dia, explicou Tamayo durante uma visita às distintas salas da instalação.

Nas consultas é habitual a presença, além do médico e do paciente, de um tradutor ou tradutora, devido à variedade de idiomas do país, onde se fala árabe, mas também bérbere e francês.

“Estou muito satisfeita e contente com o resultado de minha operação e com a atenção dos médicos”, diz por meio do intérprete Nabila Mebarik, uma jovem de 24 anos que foi submetida a uma intervenção cirúrgica para corrigir um estrabismo.

Trata-se de uma patologia bastante frequente aqui, assim como a catarata congênita, explica o pediatra Armando Estévez.

Além disso, são muitos os transtornos refrativos, sobretudo as miopias, e os alérgicos, como a conjuntivite, devido ao clima.

“O inverno aqui é muito rigoroso em alguns lugares e os verões são fortes, com mais de 40 graus de temperatura, o que influi em toda a patologia ocular”, acrescenta o doutor.

Apesar de falar diferentes idiomas e dos usos e costumes diferentes, médico e paciente conseguem manter excelentes relações.

“Geralmente são pessoas humildes, muito carentes, que nos procuram com a esperança de melhorar sua visão e sua qualidade de vida, e quando veem que são bem atendidas e constatam os resultados do tratamento ficam muito agradecidos”, afirma o doutor.

Djemai Mouissat, de 67 anos, tinha uma úlcera na córnea e aqui os médicos cubanos trataram sua infecção. Agora está melhor e já não sente dor. “Que deus os proteja e guarde”, diz.

Um total de 110 cooperantes cubanos, entre médicos, oftalmólogos, licenciados, técnicos e engenheiros formam o pessoal do hospital.

Ali também trabalham argelinos, sobretudo nos distintos tipos de serviços, contabilidade, manutenção e apoio à assistência médica, como os intérpretes.

O centro realiza entre 60 e 80 intervenções cirúrgicas diárias de todo tipo, inclusive cirurgia menor e as efetuadas com laser.

Com a colaboração cubana foi possível alcançar notáveis indicadores de saúde, não apenas em oftalmologia, como também em outros programas, como o materno-infantil, a urologia e a oncologia.

O diretor do centro lembra que a Argélia foi o lugar onde se materializou pela primeira vez um dos princípios da Revolução cubana, que é o internacionalismo.

Em maio de 1963, apenas poucos meses depois da vitória argelina contra a metrópole francesa, chegaram a este país norteafricano 56 especialistas, entre médicos, estomatólogos, enfermeiras e técnicos, para atender a população.

Devido à importancia do papel desempenhado pelos médicos aqui, Argélia e Cuba propuseram o dia 24 de maio como a data para celebrar o início da cooperação bilateral no campo da saúde, ponto de partida de uma história de amizade compartilhada durante meio século.

Atualmente há neste país mais de 700 cooperantes distribuídos em 12 wilayas ou províncias, que atendem diversas especialidades.

Como resultado dos vínculos bilaterais foram inaugurados três hospitais oftalmológicos nas wilayas de Djelfa, Ouargla e Bechar, estando a ponto de abrir suas portas um quarto centro deste tipo.

A presença cubana é ampla, não só na Argélia, como também em muitos países do continente, onde já prestaram serviço mais de 300 mil profissionais em vários setores.

Aqui estão sobretudo nas províncias do maciço central e no sul do país, onde são mais necessários, devido às difíceis condições das zonas desérticas.

Graças a este trabalho dos médicos, especialistas e técnicos, afirma o diretor do centro, o pessoal cubano da saúde goza de um prestígio bem merecido na África.

*Prensa Latina de Argel para Diálogos do Sul

Para não morrer idiota!

 

<<Cléo Vieira – especial Diálogos do Sul>>

Aqui em Paris, enquanto converso com minha cabeleireira, um peruano entra para cortar o cabelo. “Nossa, parece o Chávez”, disse eu. No salão a gente diz tudo, ou quase tudo.

-Ah! O horrível ditador colombiano!, retruca o barbeiro.

Pronto, em que pese à confusão de identidade, bastou para me convencer: a mídia francesa faz lavagem cerebral ao privilegiar a crítica, senão claramente a desqualificação, quando se trata do que se passa na Venezuela. A incompreensão é demais e o método consiste em propor a França como referência.

Agora, vamos aprofundar? Assim, para o Express (7/10/12) “para obter um alojamento ou entrar na Universidade pública, é preciso ter a carta do partido de Chávez”. Depois, em certo momento, o jornal faz um rápido balanço social do governo, sem, contudo, preocupar-se em pesquisar minimamente a acusação proferida. Porque não dizer que a pessoa ouvida pelo jornalista é branca e, muito provavelmente, pertencente à oligarquia, a que votou na oposição? Por que não fazer a menor alusão à “Misión Vivienda” que tem como objetivo fornecer habitação digna a cada venezuelano, desafio de gigante, já que o déficit habitacional está estimado em mais de 2 milhões de unidades? Ou relatar que, segundo a promessa do governo, 400.000 alojamentos estão hoje em obras a que 3 milhões devem estar prontos daqui a três anos,?

Para o sério e renomado Le Monde (8/10), “Chávez esmaga os dirigentes que o cercam” (será brasileiro o jornalista que assina o artigo, Paulo Paranaguá?). O artigo “Portrait en cinq thèmes” (Retrato com cinco facetas, de 6/10) vai mais longe: “Chávez revive a herança militar em seus discursos, nos símbolos e nas instituições criadas… boina vermelha e uniforme de combate, ele adora ser chamado de ‘comandante’”. Seguramente, quanto aos símbolos externos, à aparência. Mas que instituições quase militares são essas? Tratar-se-ia dos Conselhos Comunitários, criados em 2006 para se tornarem os principais atores da política local? Eles são hoje mais de 20 mil, permitindo que 200 a 400 famílias se unam para desenvolver projetos diretamente financiados pelo poder central. Uma crítica de esquerda consequente veria neles um meio de contornar o papel do Estado e um sério risco de clientelismo e de corrupção, nos moldes das ONGs, no Brasil. O The New York Times classifica o Presidente bolivariano como “um ardoroso inimigo de longa data de Washington” sem, contudo, dignar-se esclarecer minimamente como e porque faz escola. Pudera, com seus 1.000 repórteres, suas 26 agências pelo mundo e seus 80 prêmios Politzer, o diário norte-americano merece ser imitado.

No mesmo tom superficial, o Le Monde International (8/10) destaca a declaração de um empresário: ”Os comunistas ganharam de novo, não há nada mais que se possa fazer; abandono o país, vou-me embora”. A mesma caricatura quando se diz e repete que “quem não vota em Chávez não consegue trabalho, pois ele controla tudo. Só resta emigrar”.

Evidentemente, sabemos que os problemas na Venezuela são muitos e enormes: falta de infraestrutura elétrica que ocasiona apagões gigantes; uma criminalidade que faz do país um dos mais violentos do mundo; dependência extrema da economia do petróleo, único e soberano recurso (95% das receitas de exportação e 50% do orçamento nacional), ou seja, basicamente, a economia permanece sendo a de um mercado comprador. Mas, seguramente, a França não é um modelo isento de crítica e falar de ditadura… Quanto à corrupção, a que existe no sistema financeiro de qualquer rica potência ocidental é incomparavelmente maior. Não deve o autoritarismo ser visto no contexto da Venezuela no cenário internacional?

No final, ronda uma inquietação, insistente. Para que dar-nos tanto trabalho para informar-nos sendo que, nesse ritmo, o risco é morrer idiota à vista de tanta parcialidade e dos absurdos publicados? A desinformação é grande demais e faz parte da luta de classes. O poder da mídia faz parte do poder das classes dominantes. E isso só vai mudar quando a relação de poder entre as classes mudar também. Quando isso mudará?

O inglorioso fracasso do neoliberalismo

José Maria Rabêlo

Nas últimas décadas do século passado até os primeiros anos do atual, “os donos” da teoria econômica quiseram nos impor como verdade absoluta que o mercado era capaz de regular a produção e a distribuição da riqueza. Seus arautos no Brasil, instalados em organismos como a Fundação Getúlio Vargas e alguns centros universitários, nos ministérios de Collor e FHC, no Congresso, na grande imprensa e nos partidos conservadores, tentaram implantar uma forma de pensamento único, baseado na ideologia da moda, o neoliberalismo. Era preciso eliminar, segundo eles, qualquer intervenção do estado na economia ou reduzi-la a sua expressão mínima. Desenterrando as teses antediluvianas de economistas como Friedrich Hayec e Milton Friedman, transformados em profetas dos novos tempos, reduziram suas ideias pretensamente inovadoras ao que se chamou de Consenso de Washington, identificado com os interesses do grande capital.

Um de seus divulgadores mais ilustres, o japonês-americano Francis Fukuyama, chegou a decretar o fim da história. Com o neoliberalismo, os homens começariam a viver uma nova era, diferente de tudo o que havíamos visto e vivido antes. Assistimos então a uma avalanche de argumentos supostamente científicos na defesa do velho pensamento, travestido de moderno e transformador. Poucos foram os que se insurgiram contra esse retorno ao passado. Orgulho-me de ter estado na primeira linha desse combate desigual, procurando, em artigos, entrevistas, programas de televisão, desmascarar a impostura que nos queriam impingir. Nessa época, juntamente com outros jornalistas, fizemos da revista Cadernos do Terceiro Mundo, editada sob a direção do deputado e também jornalista Neiva Moreira, uma trincheira contra o predomínio neoliberal. Cadernos era a única publicação no Rio e uma das pouquíssimas no Brasil a sustentar essa posição.

Os governos Collor e FHC trataram de implementar um sistemático programa de desestatização, anulando décadas de desenvolvimento do País sob a égide do estado. Assim, foram sendo desmanteladas e vendidas as empresas de telecomunicação, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Usiminas, as ferrovias, os portos, os bancos públicos, etc., numa política de terra arrasada, que só favoreceu os privilegiados arrematantes. Na maioria, foram entregues a preços vis, que não guardavam nenhuma relação com o que significavam seus patrimônios. O caso da Vale tornou-se emblemático: o governo FHC a vendeu por de U$ 3,3 bilhões, quando de fato valia cerca de duzentos, e ainda com o pagamento feito com as chamadas “moedas podres”, adquiridas pela metade do seu valor de face. Um escândalo que a história cobrará para sempre de seus responsáveis.

A crise do capitalismo mundial, que parece não ter fim, é o resultado direto das doutrinas neoliberais. A falta de um mínimo planejamento estatal levou ao colapso das principais economias, algumas delas, como a da Grécia, a um passo da desintegração.

A magnificação da procura do lucro e do culto às políticas do mercado estão provocando a ruína do mais avançado modelo de sociedade que o mundo conheceu, o chamado estado europeu de bem estar social.

E qual foi a saída que encontraram para a crise? A intervenção do poder público através da inversão de centenas de bilhões de dólares e euros nas economias mais afetadas. Para livrar-se do desastre total, os neoliberais, contrariando tudo o que disseram e fizeram antes, recorrem ao socorro do estado, embora deixando a conta para ser paga pelos trabalhadores e os mais pobres, ameaçados de perder seus direitos fundamentais.

Seus porta-vozes entre nós estão calados, fingindo-se de mortos. Perderam a antiga arrogância, mas sem reconhecer os males que causaram ao País. Felizmente não puderam completar sua obra, o que nos permitiu preservar algumas instituições hoje determinantes no esforço de vencer a crise, como o BNDES, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, a Petrobras. Sem elas, certamente, o Brasil teria acompanhado a bancarrota internacional.

Livro

Sugeriria ao público a leitura de um livro, recentemente publicado, imprescindível para se conhecer em profundidade o fracasso do neoliberalismo. O Universo Neoliberal em Desalento, do economista José Carlos de Assis e do engenheiro Francisco Antônio Dória, desmonta com números e fórmulas matemáticas a farsa neoliberal. O livro é um chute no traseiro, para usarmos a expressão da moda, daqueles que pretenderam fazer a roda da história girar para trás.

A hecatombe neoliberal – Parte 2

José Maria Rabêlo

A situação é esta, como havia tratado no artigo anterior: o neoliberalismo está levando a Europa a uma nova crise, que, segundo os especialistas, poderá ser pior que a Grande Depressão dos anos 30.

Os números são catastróficos: a Espanha tem 25% de sua população economicamente ativa desempregada, índice que chega a 50% entre os mais jovens; a Grécia não faz por menos, são quase 20% sem trabalho e um caos político que ameaça a própria institucionalidade do país; a orgulhosa Inglaterra, que se imaginava à margem do desastre, vive o pior ciclo econômico dos últimos 100 anos; a Irlanda, apresentada durante longo tempo como exemplo bem sucedido das políticas neoliberais, amarga um período de retrocesso da economia, marcado por um desemprego de também 20% da população. Da Espanha à Letônia, como diz o Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, a Europa sente-se invadida pelo fantasma da crise e da desesperança.

Em nível mundial, a estagnação já produziu uma perda de mais de 50 milhões de postos de trabalho, com relação aos que existiam antes de 2008. Até o fim do ano, segundo dados da OIT, Organização Internacional do Trabalho, serão 200 milhões de pessoas desempregadas.

A reação às políticas que levaram a esse quadro de ruina econômica manifesta-se por todo o continente.

Num reflexo da agitação que pulsa nas ruas de quase todas as capitais europeias, onze países viram cair seus governos comprometidos com o neoliberalismo (Espanha, Portugal, Bulgária, Finlândia, Hungria, Irlanda, Letônia, Lituânia, Eslovênia, Holanda e França) e outros, como a Inglaterra e a Alemanha, que sofreram pesadas derrotas eleitorais.

Diante da revolta popular, os governantes, pelo menos em palavras, começam a reconhecer que é preciso buscar outros caminhos, na contramão das medidas de austeridade, seguidas até aqui.

Não bastam essas palavras nem o choro pelo fracasso. Impõe-se uma mudança real e radical do modelo adotado nos últimos anos, baseado na valorização irracional do mercado e nos desprezo às questões sociais, que resultou na hecatombe que se desenha no horizonte.

Graças as suas últimas administrações, o Brasil está mostrando ao mundo que há alternativas às doutrinas neoliberais, que nos quiseram impingir como verdadeiras e definitivas. É hora de avançar, para que essas conquistas se consolidem.

Janela

O neoliberalismo levou o mundo ao pior desastre dos tempos modernos, uma hecatombe que ameaça levar à ruina vários países.

Neiva

O Brasil perdeu, na madrugada de 10 de maio, um grande combatente social. Neiva Moreira, jornalista, deputado e dirigente partidário, deixou-nos aos 94 anos, ao fim de uma extraordinária trajetória de luta e coerência política.

Nos anos anteriores ao golpe de 1964, participou de inúmeros movimentos populares, nacionalmente e em seu estado natal, o Maranhão, como o da defesa do petróleo (“O petróleo é nosso”) e pela criação da Petrobrás; a campanha das reformas de base do governo Goulart e a resistência à conspiração que levou à intervenção militar. No exílio, atuou decisivamente no esquema de divulgação e denúncia dos crimes da ditadura. Em 1979, juntamente com Brizola e outros companheiros, teve atuação destacada na organização do histórico Encontro de Lisboa, pela reconstituição do Trabalhismo. De volta do exílio, além de eleger-se deputado federal, com relevante desempenho, fundou Cadernos do 3º Mundo, fazendo da revista uma trincheira no combate ao neoliberalismo e à política de privatizações do governo de FHC. E assim foi em toda a sua vida.

A seu lado, tomei parte em vários daqueles momentos, inclusive quando fomos encarregados por Brizola de dar a forma final à chamada Carta de Lisboa, documento matricial do PDT.

Não é fácil escrever sobre Neiva em tão poucas linhas. Há uma expressão, entretanto, que resume toda sua irretocável biografia: foi um patriota que amou o Brasil e seu povo acima de tudo.

Será impossível esquecê-lo, especialmente pelos que o conheceram de perto. Em meu caso, num convívio de mais de 50 anos, que se interrompe agora pela inelutabilidade da morte.

Cooperação Angola e Brasil: nova jazida de petróleo é descoberta em menos de uma semana

Juliane Cintra

Luanda (Angola) - O presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, dá as boas-vindas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva  Foto: Ricardo Stuckert/PR

Foto: Ricardo Stuckert/PR - Agência Brasil

A Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangol), em parceria com a Petrobrás, encontra novo poço de petróleo em águas profundas a 200 quilômetros da capital Luanda. Esta descoberta, a segunda anunciada em menos de uma semana, ocorreu no poço Manganês-01, perfurado no bloco 18/06, no qual a estatal brasileira é operadora.

A aposta em Angola, resultado de uma antiga parceria, representa o maior programa de perfuração exploratória da Petrobrás fora do Brasil. Atualmente, a companhia opera em três blocos (Blocos 18/06, 6/06 e 26) e participa, como não-operadora, em outros três consórcios (Blocos 2/85, 15/06 e 34).

Com 1500 metros de profundidade, em reservatórios arenosos de idade Miocênica, o poço Manganês-01, segundo comunicado oficial, “comprovou a existência de óleo de excelente qualidade”.  Em operações teste, a Petrobrás ressaltou a produção de petróleo “com altas vazões e excelente índice de produtividade”.

Planejando investir US$ 900 milhões até 2012, a Petrobrás pretende perfurar 11 poços exploratórios até 2011 e consolidar sua atuação em Angola, iniciada em 1979.

A empresa brasileira também desenvolve atividades em outros países africanos, como a Tanzânia, Guiné Equatorial, Moçambique, Líbia e Nigéria.

Fonte: Agência Brasil e O Estado de São Paulo

Bastidores na relação Angola e Brasil

Beatriz Bissio

Embaixador Ovidio Melo 3 (1)O Embaixador Ovídio Melo, representante do Brasil em Angola no período de transição à independência, faz revelações de grande interesse histórico sobre a queda de braço ao interior do regime militar brasileiro em relação à política para África traçada pelo Itamaraty.

Quando o Presidente Agostinho Neto, na manhã de 11 de novembro de 1975  fez o seu primeiro pronunciamento como Chefe de Estado desde a sacada do Palácio de Governo de Luanda – até então um dos símbolos do poder colonial português – o povo que ouvia o discurso desde a praça demonstrava, no seu entusiasmo e alegria, clara noção de estar a viver um momento histórico.

A relação dos primeiros países que haviam reconhecido o governo do MPLA estava sendo divulgada. O maior destaque era dado ao anúncio do reconhecimento do governo brasileiro, o único fora da esfera do mundo socialista. O que ninguém sabia, porém, salvo poucas pessoas do governo do general Geisel, era que vinha sendo travada uma verdadeira batalha no Brasil para que esse reconhecimento acontecesse. Um dos protagonistas dessa queda de braço ao interior do regime militar era o Embaixador Ovídio de Andrade Melo, designado representante do Brasil em Angola no período de transição à independência e Embaixador Especial para o dia 11 de novembro de 1975.

De família de classe média, nascido no Rio de Janeiro, Ovídio Melo não tinha o perfil clássico dos diplomatas do Brasil, tradicionalmente filhos das classes abastadas. Aliás, sempre que lembra o seu ingresso à Casa do Barão do Rio Branco o Embaixador faz questão de dizer que o fez “por concurso”. Quando foi chamado para servir em Angola, em 1974, desempenhava-se como Consul-Geral em Londres e já tinha sido Chefe da Divisão das Nações Unidas no Ministério, pouco depois da transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília. Nesse posto cabia-lhe a responsabilidade de elaborar as instruções para a Delegação do Brasil na Assembléia Geral da ONU e, em particular, a posição do Brasil na questão específica da descolonização da África.

Como o chanceler da época, Juracy Magalhães, cunhara a frase segundo a qual “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, e os EUA se abstinham nessa votação, Ovídio Melo procurava levar o Itamaraty a fazer o mesmo, ao invés de apoiar a ditadura salazarista de Portugal. Mas, a sugestão não logrou ultrapassar a barreira do Secretário-Geral do Ministério, Pio Correia, e o Brasil continuou a votar a favor de Portugal por muitos anos.

Foi também um período de cassações no Itamaraty; entre os diplomatas cassados estava o pai de Sérgio Vieira de Mello, que nesse ato justificava a sua decisão de fazer a carreira diplomática na ONU e não no Brasil. Nas palavras de Ovídio Melo, “enquanto a repressão da ditadura de agravava, no Itamaraty se formava um corpo de diplomatas-policiais a serviço da repressão”.

Nesse contexto, como entender o reconhecimento pelo Brasil de um governo chefiado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola, contrariando as posições norte-americana, portuguesa, da OTAN, e alinhando-se com o mundo socialista? É o que África 21 perguntou ao embaixador Ovídio Melo e ele responde, ao longo desta entrevista exclusiva.

  • Embaixador, o reconhecimento de Angola custou caro à sua carreira. Gostaríamos de conhecer melhor esse episódio, que faz parte da história das relações do Brasil com a África…
  • O.M. – O tratamento que o Itamaraty me dispensou só merece aqui referência porque se caracterizou pela mesma ambiguidade e relutância que a Chancelaria demonstrou em defrontar as forças internas e externas que se contrapunham ao reconhecimento de Angola. Em 1976 fui incluído no quadro de promoções. Mas a promoção não aconteceu, provavelmente pela  resistência das  forças que tinham se oposto ao reconhecimento e me queriam como bode-expiatório.
  • Na verdade, a sua promoção só aconteceu uma década depois…
  • O.M – Ocorreu em 1986, na primeira promoção feita pela Nova República.  E, depois de Angola, só servi como Embaixador comissionado na Tailândia e na Jamaica, postos periféricos da política externa brasileira. Porém, me orgulho de haver servido em Luanda naquela decisiva ocasião e confesso que a experiência desse período foi para mim mais valiosa do que tudo que aprendi em 42 anos de carreira.
  • Como surgiu a questão do reconhecimento de Angola?
  • O.M – Em 1974 eu estava em Londres quando se instalou o Governo Geisel no Brasil e quando ocorreu a Revolução dos Cravos em Portugal. Eu não conhecia nem ao general Ernesto Geisel – salvo pelo papel moderador contra as torturas – nem o novo Chanceler, Embaixador Antônio Francisco Azeredo da Silveira 1. No Itamaraty havia setores que vinham tentando demover Portugal de sua obstinação colonialista e, após o 25 de Abril surgiu no Gabinete de Silveira, por iniciativa do Embaixador Ítalo Zappa, Chefe do Departamento África, a original idéia de criar Representações Especiais, com o status de Embaixadas antecipadas, em Angola e Moçambique. Elas atuariam durante a transição à independência e seriam, depois, substituídas por Embaixadas.2
  • Qual era o papel atribuído a essas a Representações?
  • O.M – Acreditava-se que com a simples presença, o Brasil não só daria mais credibilidade ao processo de transição como ajudaria ambas as partes – Portugal e as colônias – a transitar pelo árduo caminho da construção de relações sobre novos alicerces.
  • Como se deu a sua nomeação para chefiar a Representação em Angola?
  • O.M – Em junho de 1974 eu tinha sido designado para acompanhar, como observador, um seminário da OTAN na Universidade de Oxford. Um dos muitos assuntos tratados foi a descolonização da África portuguesa. No que dizia respeito a Moçambique, o consenso era que o processo seria fácil; a colônia era pobre e só um movimento de libertação podia proclamar a independência, a FRELIMO.
  • E em relação à Angola?
  • O.M – Também houve consenso, porém com outro signo: se tratava de uma colônia muito rica e apresentavam-se para receber o poder três movimentos, MPLA, FNLA e UNITA, chefiados respectivamente por Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi. Segundo os prognósticos da OTAN, a disputa seria acirrada e levaria cinco anos para que a independência se concretizasse.
  • Logo depois desse seminário veio o convite?
  • O.M – Veio em novembro de 74. O Embaixador Zappa, meu conterrâneo de Barra do Piraí (município do interior do Estado do Rio),  meu amigo desde a juventude, me disse que o Chanceler Silveira tinha pensado no meu nome para a Representação em Angola.
  • Você aceitou logo?
  • O.M – Fiz algumas perguntas para entender a missão proposta.  Estaria o Brasil querendo influenciar o processo de independência de Angola? Tentaria favorecer algum dos movimentos ou ajudar tentativas neo-colonialistas? E se o processo viesse a ser tortuoso, como previa a OTAN? E se, ao final desse processo predominasse justamente o MPLA, que as potências ocidentais julgavam inaceitável?
  • Zappa tinha respostas?
  • O.M – Em relação às primeiras questões, sim. Me disse que o Brasil não tinha nenhuma intenção de moldar a independência de Angola, nem de desvirtuar o processo em favor de Portugal, nem de favorecer um ou outro movimento. Seria isento, neutro. Mas, em relação à última questão, ele tinha dúvidas, mesmo quando o discurso era que o Brasil estaria pronto a reconhecer qualquer um dos movimentos que, sobrevinda a independência, tivesse alcançado o poder.
  • Dúvidas em que sentido?
  • O.M – Dúvidas sobre o que poderia acontecer caso o processo de independência não saísse a gosto de alguns setores da opinião pública brasileira e internacional.Mas, justamente nesse aspecto – julgava ele – era importante a presença do Brasil com a Representação Especial: se estivéssemos em Luanda desde o começo do processo de transição,  mais difícil se tornaria uma guinada súbita em 11 de novembro. Em vista desses argumentos, aceitei a incumbência.
  • Como se deu o seu primeiro encontro com Agostinho Neto?
  • O.M – Foi a bordo de um avião! Eu devia entrevistar-me com ele, na sua qualidade de chefe do MPLA, pois a abertura oficial da Representação Especial exigia a aprovação explícita dos três movimentos, apesar da aprovação que a missão tinha recebido, de maneira informal, nas sondagens prévias.
  • Ou seja que também houve entrevistas com Holden Roberto e Savimbi…
  • O.M – Si, me entrevistei com os três.
  • Bem, voltemos a Agostinho Neto…
  • O.M. – O primeiro encontro aconteceu no marco de uma viagem minha a Tanzânia, anterior ao retorno de Agostinho Neto a Angola. Mesmo tendo sido informado que Agostinho Neto estava viajando, procurei o chefe do escritório do MPLA em Dar-es-Salaam, André Petrov. Soube então que Agostinho Neto retornaria a Dar es-Salaam em breves dias e me receberia com prazer, como recebera Zappa pouco antes, quando o Chefe do Departamento África visitou o continente.
  • Você ficou aguardando em Dar-es-Salaam?
  • O.M – Não, não podia esperar. Outros assuntos exigiam a minha presença em Nairobi. Mas, certo dia, me informaram que Agostinho Neto regressara a Dar es-Salaam, porém, viajaria de novo. Passaria na manhã seguinte por Nairobi, em rápida escala. Só poderia encontrá-lo no aeroporto; uma entrevista curta, entre a troca de aviões.
  • – Houve esse encontro no aeroporto?
  • O.M. – Na verdade, aquela mesma noite, estudando as rotas das poucas companhias que serviam entre Nairobi e Dar es-Salaam, cheguei à conclusão de que Agostinho Neto só poderia embarcar num vôo da East African Airways que passaria de madrugada por Nairobi. Na mesma noite viajei para a Tanzânia, cheguei a Dar es-Salaam e esperei no aeroporto, para voltar a Nairobi no mesmo avião que Agostinho Neto.
  • A estrategia deu certo?
  • O.M – Sim, voltei de Dar es-Salaam sentado ao lado de Agostinho Neto, num avião que estava inteiramente ocupado por dirigentes do MPLA. Iniciava-se, naquele vôo, a primeira etapa do retorno do líder do MPLA a Luanda, que buscava chegar, depois de algumas escalas, no dia 4 de fevereiro. Como é sabido, nessa data, 14 anos antes, o MPLA se sublevara na capital e pela primeira vez atacara as prisões e quartéis portugueses.
  • Como foi a sua conversa com Agostinho Neto?
  • O.M. – Foi muito simpática, num ambiente de contida excitação. É de se imaginar o grande significado político e histórico que esse momento teve para ele e seus correligionários do MPLA!
  • A sua conversa com ele tinha um objetivo específico…
  • O.M. – Sim! Agostinho Neto mostrou-se contente com a nova orientação da politica externa brasileira e concordou com a abertura de uma Representação Especial em Luanda. Aliás, revelou-se muito interessado pela cooperação de todo tipo que o Governo brasileiro pudesse dispensar a Angola, antes, durante e depois da independência.
  • Abordou algum outro tema?
  • O.M. – De maneira muito comedida, discorreu sobre a situação política em Angola.
  • – Algo em particular ficou guardado na sua memória das suas palavras?
  • O.M  –O que mais me impressionou foi a visão ampla e compreensiva de Agostinho Neto sobre os temas abordados. Sobre o futuro das relações do Brasil e Angola, por exemplo, disse estar convencido de que os nossos países – irmanados pela cultura e pela mestiçagem – tinham tudo para o estabelecimento de proveitosas relações comerciais, econômicas, técnicas e culturais. Também percebi que, em 14 anos de guerra, ele não se tornara hostil a Portugal: era adversário, sim, do colonialismo português.
  • O que aconteceu depois?
  • O.M – De Nairobi fui a Angola. Lá visitei o Alto Comissário português, Silva Cardoso, e os três Primeiros Ministros, um de cada movimento. O Alto Comissário português, general da aviação, pareceu-me inadequado para as funções, entre outras razões porque não demonstrava isenção entre os três movimentos: na rápida e afável conversa que tivemos fez acusações a Holden Roberto e Agostinho Neto e afirmou que dos três dirigentes,  Savimbi era “o menos ruim para os portugueses”.
  • Você se entrevistou com Savimbi?
  • O.M – Sim, marquei uma entrevista com ele em Silva Porto (hoje Huambo). O encontro foi num hotelzinho e o local onde Savimbi me recebeu estava apinhado de guerrilheiros pesadamente armados.
  • Como foi a conversa?
  • O.M. – Bastante descontraída. Declarei-lhe qual era a proposta brasileira e nem tinha terminado de explicar a idéia da Representação Especial, ele já tinha aceitado. Falei da cooperação que o Brasil poderia prestar mas fiquei com a impressão de que ele pouco ou nada sabia do nosso país e pouco lhe interessava esse tipo de cooperação. Só me disse que iria pensar no assunto e eu senti que o que ele teria gostado de escutar eu não poderia dizer. Só podia afirmar que o Brasil se propunha a ser isento. Despedi-me logo porque a missão estava cumprida: o Brasil tinha agora também o apoio da UNITA para abrir a representação.
  • E a posição do FNLA? Onde aconteceu a entrevista com Holden Roberto?
  • O.M  – Foi no Zaire. Mas como de lá demorara a confirmação da data, aproveitei esse período em Luanda para conversar novamente com Agostinho Neto.
  • Onde foi o encontro?
  • O.M  – Numa das casas oficiais que antes serviam como moradia de funcionários coloniais, perto do Palácio de Governo. Marquei a entrevista por telefone e ele me recebeu essa mesma tarde. Só havia no local dois guardas, no jardim. Ele mesmo me abriu a porta e me convidou a entrar.
  • Como foi esse segundo encontro?
  • O.M  – Muito agradável. Em primeiro lugar eu cumprimentei-o pela recepção que tivera em Luanda no dia 4 de fevereiro, que eu presenciara. Depois conversamos sobre a cooperação entre Brasil e Angola.
  • Algum projeto concreto?
  • O. M. – Eu tinha estado com o vários ministros do governo de transição, entre os quais o de Planejamento, Saidy Mingas, do MPLA, jovem e culto economista, que tinha grandes expectativas na cooperação bilateral, e com o Ministro da Saúde, Samuel Abrigada, do FNLA. Por ser Agostinho Neto médico achei oportuno trocar idéias com ele sobre os planos de Abrigada, que easpirava a levar para Luanda trezentos profissionais, para lotar os hospitais que pretendia construir, principalmente na fronteira Norte.
  • Agostinho Neto concordou com esse projeto?
  • O.M. – Ele me disse que conhecia o plano e acreditava que se o Brasil tivesse esses trezentos médicos disponíveis com certeza iria enviá-los para a Amazônia, onde seriam muito necessários aos planos de desenvolvimento em curso, refletidos na construção da Transamazônica. Também me disse que o êxodo de médicos portugueses, que lastimava por desnecessário, pouco iria prejudicar o povo. A população negra, mesmo nas áreas urbanas, não tinha acesso a essa medicina. Tratava-se com ervas e chás. E ele desejava que essa medicina africana fosse estudada e revalorizada naquilo que pudesse ter de verdadeiramente cientifico.
  • Aconteceu, finalmente, a entrevista com Holden Roberto?
  • O. M. – Na mesma noite do encontro com Agostinho Neto embarquei para Kinshasa.  A entrevista com Holden Roberto foi dois dias depois, num quartel da FNLA. Levei comigo o Embaixador do Brasil no Zaire, Botelho Barbosa. Holden recebeu-nos cordial e informalmente. Era mais simpático do que Savimbi e foi a tal ponto loquaz que só com certa dificuldade pude expor-lhe a nova politica externa brasileira. Holden concordou imediatamente com a idéia da Representação Especial.
  • Alguma lembrança particular do encontro?
  • O. M.– O narcisismo de Holden Roberto chamava a atenção; ele se apresentava como o único  libertador de Angola. Terminou agitando no ar um documento, o Tratado de Alvor, dizendo: “Quem redigiu este Tratado fui eu.  Eu mostrei a Savimbi que, se estivéssemos juntos, nem os comunistas portugueses nem Agostinho Neto prevaleceriam. Eu redigi todos os artigos deste Tratado…” Em relação à minha missão, estava cumprida. Com o aval dos três movimentos, o Brasil poderia abrir a Representação Especial perante o Governo de Transição.
  • Quando você chegou a Luanda, já como Representante Especial?
  • O.M – Cheguei em 22 de março de 1975. Meu único colaborador, Conselheiro Cyro Espirito Santo Cardoso e a minha mulher, Ivony, chegaram pouco depois. Nos alojamos no Hotel Trópico. Com a experiência de outros postos convulsionados, Ivony resolveu acumular mantimentos. Correu riscos de toda ordem, mas graças a essas providências pudemos sobreviver os seguintes meses, quando a situação se agravou.
  • O Itamaraty ajudou, nessas circunstâncias?
  • O.M. –  O Itamaraty – que pretendia ficar neutro – não estava preparado para aquela situação. Porém, o minimo que poderia ter feito para ajudar-nos teria sido criar uma força-tarefa interdepartamental, dedicada a apressar a solução dos problemas logísticos e administrativos. Sem esse apoio, faltaram recursos e pessoal e os riscos tornaram-se maiores. No entanto,  a Representação nessa altura chegou a conceder cinco mil vistos por mês para o Brasil e retirou todos os civis brasileiros, utilizando um navio, o Cabo de Orange!
  • Quando ficou claro que o MPLA tinha o controle de Luanda e, nessa condição, seria ele a proclamar a independência, o que ocorre?
  • O.M  – Por essa época, numa fase de relativa paz na cidade, passou por Luanda Italo Zappa, que voltava de uma conferência em Kampala, Uganda. Ficou só umas horas e encontrou-nos a todos os brasileiros da Representação Especial, muito emagrecidos pelas privações passadas e pelo excesso de trabalho. Penalizado com nossas condições físicas, ou influenciado pelo pessimismo de uma rápida conversa que teve com o Primeiro Ministro da Unita, (que ainda figurava no já inexistente Governo tripartite, mas se preparava para sair no dia seguinte) , Zappa propôs-nos simplesmente o fechamento da Representação Especial, tal como os ingleses fizeram com seu Consulado Geral.
  • E você aceitou?
  • O. M. – Claro que não! Opus-me firmemente! Se em março havíamos chegado a Luanda com promessas de isenção e neutralidade entre os três movimentos, como voltar atrás agora que o MPLA se aprestava, com indiscutível apoio popular, a assumir o poder? Se nos retirássemos, estaríamos rompendo toda uma política, sem ter qualquer outra para substituí-la. E não seríamos perdoados tão cedo por essa defecção.
  • Zappa aceitou esses argumentos?
  • O. M. – Me deu a razão e embarcou no dia seguinte.
  • E como ficou a sua situação?
  • O.M –  Coloquei claramente para o Itamaraty que não seria cabível errar. Ou reconhecíamos o governo do MPLA na primeira hora ou me davam instruções para retirar-me imediatamente de Angola, com a Representação Especial e todos os funcionários brasileiros. Finalmente, dois dias antes das festas programadas, recebi a decisão do Itamaraty para ser comunicada ao governo local: o Brasil reconheceria o Governo de Luanda por declaração a ser dada à imprensa em Brasília às oito horas do dia 10 de novembro dado que, pela diferencia de fuso horários, naquele momento seria meia-noite em Angola, exatamente quando o MPLA estaria assumindo o poder. Na mesma data, informara-me o Itamaraty, seria assinado o decreto que criava a Embaixada do Brasil em Luanda. Transmiti o recado ao Primeiro-ministro do MPLA, Lopo do Nascimento. A notícia causou grande impacto e alegria no MPLA.
  • Até quando você ficou em Angola?
  • O.M – Fiquei até janeiro de 1976. Depois do dia da Independência muitas coisas aconteceram. Tão pronto esse reconhecimento foi anunciado – e ainda mais quando foi confirmada a presença de tropas cubanas em Angola – os setores mais conservadores da opinião pública se agitaram. Não aceitavam a nossa presença do lado dos países socialistas e, em particular, de Cuba.
  • Como reagiu o Itamaraty?
  • O. M. – O Embaixador Zappa, com uma nítida visão da importância da imprensa nas relações internacionais, procurava explicar ao público brasileiro, através dos jornalistas que diariamente o procuravam, o sentido da posição de equanimidade adotada pelo Brasil e a necessidade de manter firme essa posição se quiséssemos ter relações corretas e frutuosas, a longo prazo, com o continente. Mas no próprio Itamaraty Zappa encontrava críticas ao diálogo com a mídia e, na verdade, a Chancelaria calava-se diante da campanha que forças nacionais e estrangeiras moviam contra o reconhecimento de Angola. Certamente os Embaixadores dos países socialistas acreditados em Brasília alertavam o MPLA em relação ao que aqui vinha acontecendo.
  • Quando foi aberta efetivamente a Embaixada em Luanda?
  • O. M. – Com a informação recebida em 10 de novembro, eu afixei na porta do até então Consulado uma placa com a palavra Embaixada. Porém, estava alheio ao fato que em torno desse assunto criara-se, no Brasil, também uma dura polêmica. Representativo do impasse interno foi o telegrama particular que me enviou o Chanceler Silveira, afirmando que  se  encontrava sob fortes pressões pela atitude que tomara no reconhecimento de Angola,  que o Decreto que criava a Embaixada em Angola sequer tinha sido levado para o general Geisel, que com a minha insistência na necessidade de cumprir a palavra empenhada estava “atrapalhando” o processo e o melhor era permanecer de baixo perfil, sem ver nem contactar ninguém em Angola e que enquanto o impasse continuara iria me desempenhar como Encarregado de Negócios!
  • Mas você não tinha sido nomeado já Embaixador em Angola?
  • O.M. – Tinha sido nomeado Embaixador Especial para a solenidade da Independência, pois a representação anterior tinha status especial. Para servir na nova Embaixada tinha que ser designado, especialmente, um embaixador, que podia ou não ser eu.
  • Qual foi a sua reação ao telegrama do chanceler?
  • O.M. – Respondi  no mesmo dia e no mesmo tom. Mostrei que se tinha aceitado permanecer em Luanda durante um ano de guerra para construir um relacionamento serio do Brasil com  Angola independente, não podia agora estar atrapalhando o processo, e que quanto às pressões sobre ele, as suportasse com a mesma disposição com que eu enfrentara um ano de guerra, lembrando a ele que segundo tinha ouvido dos angolanos, as relações futuras com a África dependiam da atitude firme que o Brasil tivesse na sustentação do reconhecimento de Angola independente. Finalmente, disse-lhe que não poderia ser Encarregado de Negócios depois de ter sido nomeado Embaixador para o 11 de novembro. E que se não estivesse contente com a minha atuação, me desse ordem de regresso ao meu posto em Londres ou ao Brasil.
  • – E foi, de fato, substituído?
  • O.M. – Depois de outra troca de telegramas, em tom diferente – num dos quais eu elogiava a política africana que ele, Silveira, de fato iniciara – recebi instruções para deixar Luanda. Seria substituído por Affonso Celso de Ouro Preto, sub-secretário, colaborador de Zappa, que era, de fato, uma excelente designação para Encarregado de Negócios.
  • Aí se deu o seu retorno a Londres?
  • O.M. – Na verdade, não ainda, porque quando cheguei a Lisboa estava me aguardando um telegrama com ordens de voltar a Luanda. Relutei muito em voltar, tive uma irritada conversa telefônica com Zappa e com Silveira, e aceitei apenas por mais alguns dias. É que tinha que esclarecer a razão pela qual o nome de Ouro Preto havia sido recusado. E era porque ele tinha um meio-irmão, mais velho, Carlos Silvestre, que fora Embaixador em Portugal na época de Salazar e durante visita a Angola, nos anos 60, fizera um destemperado discurso de cunho colonialista. O MPLA confundira os dois irmãos. Como a decisão da recusa tinha sido do Buro Político do MPLA, só o mesmo órgão, que se reuniria o último dia de 1975 podia revogar a decisão. Por isso fiquei em Luanda até 6 de janeiro de 1976 e não voltei mais.
  • Quando foi criada a Embaixada?
  • O.M. Na virada do ano de 1975 para 1976. E o reconhecimento de Angola e das outras ex-colonias portuguesas foi citado num párrafo do discurso de fim de ano do general Geisel. Aliás, corrigido o equívoco por parte do MPLA, compareci em Luanda à festa de fim de Ano no Palácio do Governo, acompanhado de Ouro Preto, e pude apresentar o novo Encarregado de Negócios a todos os meus conhecidos do MPLA, ao mesmo tempo em que me despedia e escutava do Presidente Neto elogios à isenção que eu havia demonstrado naquele período e agradecimentos pelo reconhecimento que o Brasil foi o primeiro país a conceder a Angola.
  • A sua experiência, marcante, de fato mostra de que forma tortuosa se escreve a história…
  • O.M. – Tão tortuosa que só em 2006 eu vim a tomar conhecimento – através de documentos que o Ministro Silveira tornou públicos em depoimento ao Centro de Documentação da Fundação Getúlio Vargas – de dois telegramas trocados entre o Embaixador Zappa e o próprio Silveira. É que, ao contrário do que tinha dito para mim, Zappa enviou a Silveira um telegrama desde a África do Sul, a escala antes de regressar ao Brasil depois da visita a Luanda, recomendando que fosse fechada a Representação Especial e repatriados todos os brasileiros que lá estávamos. O outro era a resposta de Silveira. O chanceler me dava a razão, já que Zappa teve a honestidade de colocar que eu era contra essa possibilidade. E afirmava que não pouparia esforços para tentar assegurar a integridade física de todos nós.
  • Que respaldo teria tido Silveira para se manter firme nessa posição? Seria essa uma decisão pessoal?
  • O.M  – De fato, Silveira entendera perfeitamente que – apesar do alto preço que estava sendo pago pela criação da Representação oficial – ao ponto que pela primeira vez na história do Brasil o Itamaraty e o Ministério da Guerra, então ocupado por Sílvio Frota, estavam em discordância, recuar a essa altura teria sido um grande equívoco. Porém, tenho a impressão, é uma intuição pessoal, que foi o próprio Geisel quem com a sua conhecida firmeza, exigiu de Silveira e de Zappa a manutenção da decisão do reconhecimento de Angola, mesmo depois que os cubanos desembarcaram em Luanda após a proclamação de Agostinho Neto.