Malvinas e a hipocrisia

<<Miguel Mazzeo*>>

Malvinas

A “questão Malvinas” é uma ferida aberta na memória da sociedade argentina. E é um problema com várias arestas não resolvidas, tanto para a esquerda como para o campo popular em seu conjunto. Os paradoxos proliferam e tencionam os valores mais representativos das tradições políticas emancipatórias. Mostram alguns de seus pontos cegos, suas vacilações, seus mutismos.

Por exemplo, os soldados conscritos mortos durante e depois da guerra de Malvinas, e os que sobreviveram: devem ser considerados “heróis” ou vítimas da repressão interna do estado terrorista da ditadura?; são incompatíveis ambas as condições? Malvinas foi uma guerra anticolonial comparável às guerras de libertação nacional dos países periféricos (como Argélia ou Vietnam) ou foi uma guerra reacionária e irracional imposta verticalmente? Foi uma “guerra de cultura” em que uma contra-modernidade autóctone se enfrentou à modernidade eurocêntrica? É possível empilhar interrogantes desse teor até o cansaço.

Este artigo faz referencia a uma das tantas arestas contidas na questão Malvinas, com finalidade de trazer um modesto insumo para um debate coletivo que, longe de toda autoindulgência nos permita avançar em sua elucidação.

Em torno da questão Malvinas existe uma postura que se converteu em hegemônica e que praticamente se integrou ao sentido comum desta época. A mesma resulta de uma combinação de doses variáveis de liberalismo constitucionalista e de antimperialismo/anticolonialismo de “baixa intensidade”, ou seja: um antimperialismo e um anticolonialismo que tendem a dissolver os conflitos de classe nos conflitos “nacionais”. Esta postura, quase um formalismo complacente, é compartilhada por alguns setores da esquerda, do “progressismo” e do kirchnerismo.

O “politicamente correto” e “realista” com relação a questão Malvinas parece ser a exaltação nacional, mais ou menos antimperialista/anticolonialista (massivamente anti-britânica) e, claro está, pacifista e moralmente reconstituinte. Isto é: um impecável nacionalismo dito popular, sem as distorções do nacionalismo reacionário, do fascismo societário e do voluntarismo. Com relação a Guerra de Malvinas é soes colocar de relevo, por um lado, o justo da causa: a luta contra o imperialismo e o colonialismo, a defesa da soberania violada, etc. Por outro lado, o inadequado da condução político-militar: uma ditadura genocida, reacionária, pró-ocidental. Tal “resolução” da questão Malvinas não contribui com fundamentos contundentes…. estes planos podem ser cindidos tão facilmente?

Por outro lado, poucas vezes se assumem as consequências políticas decorrentes de colocar a questão Malvinas como um conflito colonial, imperialista e de soberania nacional.

Sem dúvida existe um “fato colonial” demasiado evidente para se negado Mas de trata de um colonialismo “residual”, que difere em múltiplos aspectos das atuais normas dominantes do colonialismo e do imperialismo (e também das que estavam vigentes em 1982).

Também existe uma questão pendente: a soberania. Porém no caso de Malvinas se trata de uma dimensão muito específica da soberania, de um sentido territorial e de domínio da mesma.

Quer dizer que a questão Malvinas nos remete a um fato colonial vergonhoso e inaceitável por onde que que se olhe – e a um tema de soberania – que exige solução – mas de segunda ordem e de formatos anacrônicos diante do caráter avassalador do novo imperialismo (e do novo colonialismo).

Esta situação torna possível o desenvolvimento de um antimperialismo e um anticolonialismo abstratos, que botam fogo nas bandeiras britânicas, e que reivindicam ao Gaucho Rivero, enquanto eludem o confronto com os grupos de poder mais concentrados e suas estratégias hegemônicas no âmbito local, regional e internacional. Trata-se do “antimperislismo e o anticolonialismo da reprodução ampliada do capital”, outra forma de distorção nacionalista, outra forma de irracionalidade imposta de cima para baixo.

Vale ter presente que o imperialismo e o colonialismo não são fenômenos estáticos, se alteram e com eles as condições geopolíticas e estratégicas. Uma consciência antimperialista, portanto, não pode estar colocada de uma vez e para sempre. Sobressaltar o confronto com uma ordem e um formato defasados, além de suas sobrevivências excepcionais, pode ser o subterfúgio para eludir a luta fundamental.

Aqui fica exposta uma hipocrisia do kirchnerismo: enquanto denuncia o colonialismo “residual” de Malvinas e enquanto recorre a retóricas e simbologias antimperialistas, permite o avanço das novas formas imperialistas e colonialistas. Enquanto se reclama (com toda justiça, mas sem “custos” e sem demasiada coerência) a soberania de um território, se perdem, dia a dia, quotas de soberania em mãos dos irrefreáveis processos neoimperialistas.

Como em outros campos, os fatos desmentem as palavras. Reveste-se de épica popular latino-americana um projeto que combina: ideologia da modernização, produtividade, vago humanismo, telurismo, tecnocracia, servilismo prática e anemia de ideias. Enunciam postulados que não se pretende levar até suas últimas consequências. Paralelamente se reiteram alguns silêncios. O concreto é que o “pensamento nacional” termina convertido em um instrumento de conciliação com a realidade, em uma bagagem apta para as disputas intra-sistêmicas.

Em torno a questão Malvinas se tem recorrido e se recorre a termos como “recuperação”, “consciência nacional”, “luta antimperialista/anticolonialista”, com fito de ocultar alguma inconsequência, de desembaraçar alguma ambiguidade e não precisamente para realizar as promessas conceituais. Dessa maneira, a política oficial com relação a questão Malvinas não gera práxis, pelo menos não por fora dos esquemas de chancelaria. Ao contrário, produz falsa ilusão, remete a generalidades e não a processos ativos. No longo prazo produzirá desassossego.

Desse modo, a questão Malvinas, encarada desde o ponto de vista prático de alguns quadros políticos e intelectuais do oficialismo, oferece a possibilidade de ser “antimperialista”, “patriotas” e “pacifistas” em um plano que não exige travar as batalhas imprescindíveis para uma libertação genuína e para uma soberania integral, nacional e continental.

Trata-se de dar-se conta da realidade categórica dos novos modos do imperialismo/colonialismo, de resistir a seu projeto de dominação e de colocar em pé um projeto alternativo. Talvez isto nos permita encarar em melhores condições – com mais legitimidade – a luta contra os vícios dos velhos modos. Seguramente também nos permitirá redefinir a memória sobre Malvinas.

As convocatórias para afirmar a dignidade nacional e social devem estar acompanhadas por ações que erodam o poder imperial e o domínio neocolonial, que permitam sair da entropia burguesa, que confrontem com a aliança dominante que articula grupos locais com poderes estrangeiros.

*Miguel Mazzeo é docente na Universidade de Buenos Aires e na Universidade de Lanús. É militante da Frente Popular Darío Santillán – Corrente Nacional.

Custos da guerra: vidas ou tesouros perdidos?

<<Robert Fisk*>>

 

Palmira (hoje, chamada de Tadmor)  antiga cidade na Síria central

Palmira (hoje, chamada de Tadmor) antiga cidade na Síria central

O que vale a vida de uma criança comparada com as antiguidades da Síria? Qualquer reflexão sobre os desastres arquitetônicos na Síria deve incluir esta pergunta. A criança, diria uma pessoa humanitária, vale todas as colunas de Palmira. Um historiados de sangue-frio talvez sugerisse que se poderia sacrificar a criança em troca da herança de todas as crianças futuras. Por desgraça, os dois são objeto de destruição na Síria.

O incêndio da mesquita dos Omeyas em Alepo, as cidades romanas no norte – que adquiriram novos fantasmas agora que milhares de refugiados se ocultam entre as ruinas-, são as vítimas mais recentes da guerra da arqueologia.

Emma Cunliffe, da Universidade de Durham, resume o dilema na mais recente edição da revista Britsh Archeology. Se há entre 60 e 70 mil mortos e a neve invernal sepulta as tendas dos refugiados, que importa o legado histórico diante de tão trágica desolação?

Cunliff, que desenvolve métodos para sistematizar os danos aos sítios arqueológicos do Oriente Médio, produziu um notável informe imparcial, em que incrimina tanto o regime como os rebeldes. Se bem que ainda não na escala de Iraque depois de 2003, parece que se estabeleceram redes (do lado da oposição) que torcem a inspeção oficial. Apreensões de vários milhares de artefatos sem registro na fronteira síria, entre eles joias, moedas, mosaicos, estátuas… sugerem que a extensão do saqueio poderia ser vasta. Talvez, indica, chegue a mais de 1.088 milhões de dólares.

Paralelamente, em Palmira, parece que as balas do governo danificaram as colunas romanas e que veículos oficiais utilizaram os antigos caminhos do império, tal como os Humvees dos Estados Unidos esburacaram as vias da Babilônia em 2003-, enquanto em Homs a catedral de Hum-al-Zennar, um dos tempos mais antigos da cidade, jaz em ruinas, após seus fieis terem sido abatidos e dispersos e silenciadas suas antigas liturgia arameia. Era uma das igrejas mais antigas do mundo; datada do ano 59 e continha uma cinta que se diz pertencera à Virgem Maria. Si se pretende buscar um responsável há que perguntar quem foi o primeiro a utilizar armas de foto no banho de sangue na Síria.

Desde que o The Independent on Sunday divulgou em grande escala a destruição da herança síria, ambos os bandos na guerra utilizaram o dano em favor de sua causa. Oficiais do Exército Sírio Livre prometeram prevenir saqueios – afirmação duvidosa, uma vez que os mercados em Jordânia estão agora inundados de ouro, mosaicos e estátuas da Síria – e até usaram a Palmira romana em um vídeo de propaganda no YouTube. Foi produzido pelo Centro de Meios da cidade de Tadmor (Palmira) e nele se vê um ginete que cruza a tela levando a bandeira verde, branca e negra do ESL em frente das colunas da Via Máxima.

Resulta interessante que o próprio ministro de Antiguidades do governo sírio, o professor Maamoun Abdul-Karim, apelou aos sírios a proteger os tesouros arquitetônicos do país porque é responsabilidade de todos trabalhar juntos para preservá-los. Se bem reconheceu o dano causado em alguns sítios romanos no norte, elogiou os aldeões locais por terem expulsado os saqueadores. Os moradores parece terem percebido que uma cidade sem antiguidades jamais ganhará dinheiro do turismo.

O ministro também afirma que o grosso dos tesouros ficou resguardado em lugares seguros. Porém, onde estão esses lugares? E se são tão seguros, porque os deslocados internos não correram em massa para eles?

Um proeminente arqueólogo libanês disse –e esta é uma das características mais perturbadora desta trágica caçada de tesouros sírios- que os contrabandistas agora trabalham para as mesmas redes criadas pelos saqueadores. No âmbito internacional se gerou um gosto por esses tesouros e agora os compradores mobilizam os bandos iraquianos para que utilizem os mesmos métodos na Síria.

O Washington Post esteve investigando as rotas de contrabando dos rebeldes, e os insurgentes declararam que uma só carga pode gerar 50 mil dólares para comprar armas. Uns dias somos combatentes, outros dias somos arqueólogos, declarou ao jornal um rebelde da cidade de Idlib.

Vários arqueólogos (dos legais) sugeriram que seus apelos a OTAN – inclusive ao ministro britânico de Defesa – conseguiram que os pilotos tentassem não danificar os sítios arqueológicos romanos na Líbia em 2001, mudando munições para evitar salpicá-los de metralha enquanto atacavam as legiões de Kadafi. Mas sobre a Síria não voam aviões da OYN, é duvidoso que os pilotos desse país levem a mensagem do ministro Abdul-Krim na cabine. Então, voltamos à velha pergunta: quanto vale a vida de uma criança?

 

*jornalista de The Independent da Grã Bretanha, de SurySur para Diálogos do Sul

O drama da Palestina, teorias públicas e realidades ocultas

 

Foto: Flickr/percursodacultura

 

<<Roberto Savio – parceria IPS>>

Nas últimas semanas assistimos a uma leitura homogênea dos últimos atos do drama palestino por parte dos meios de comunicação. O Hamas começou a lançar mísseis contra Israel. A represália israelense deu-se mediante violentas incursões aéreas e, como os palestinos não pararam de responder, Israel decidiu invadir e eliminar as estruturas do Hamas.

A essa altura, o presidente norte-americano Barack Obama ficou muito preocupado e enviou Hillary Clinton ao local. Clinton persuadiu o presidente egípcio Mohamed Morsi a intervir, o que ele fez com eficiência, havendo agora uma trégua entre Hamas e Israel. Isto foi mais ou menos o que lemos.

Caso fosse necessário demonstrar o alcance da homogeneização dos meios de comunicação e a falta de interesse na análise, este seria um ótimo exemplo.

Os meios de comunicação estão em uma séria crise de sobrevivência, com una contração de circulação e da renda oriunda da publicidade. De modo que têm forçosamente que vender e, para isso, têm que baixar o nível de sofisticação para chegar ao maior número possível de pessoas. Cada vez mais cobrem eventos e cada vez menos, processos – e o declínio do nível do debate político é evidente. Como observou Ronald Reagan (um grande comunicador), o segredo para chegar a um grande número de pessoas é dar explicações básicas para problemas complexos. Basta ver que na imprensa internacional, o tamanho aceitável para uma coluna são 850 palavras.

Mas voltemos ao drama palestino, fazendo uma leitura mais clara deste último episódio, em que morreram 100 palestinos e três israelenses – normalmente a proporção é de 10 palestinos para cada israelense, ou seja que, agora, a relação subiu para 33 a um. Vamos repassar brevemente os atores da tragédia: Hamas, Israel, Obama, Egito.

Hamas. É um fato que o Hamas, sem nenhum motivo particularmente dramático, começou a disparar mísseis diariamente sobre o território israelense. Por trás disso existem dois fatos visíveis.

Primeiro, dentro de algumas semanas vão haver eleições em Israel, com um não muito brilhante Primeiro Ministro, Benjamin Netanyahu, que cometeu um grave erro de cálculo ao apoiar abertamente Mitt Romney, explicitando sua clara aversão por Obama. Segundo, o chefe da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahamoud Abbas, pediu (e obteve) que las as Nações Unidas reconheçam o Estado Palestino como observador, dando de esa maneira uma clara legitimidade ao status do estado palestino.

Isso foi recebido com grande resistência por Israel e, em consequência, por parte de Washington, dirigindo todas as atenções para Abbas, que aparece como um muito razoável, moderado e digno de crédito interlocutor para a comunidade internacional, ao contrário do Hamas que oficialmente se nega a aceitar Israel como uma entidade legal. Mas, com sua iniciativa dos mísseis, o Hamas transformou-se no novo centro de atenção da comunidade internacional. Lembrou a todos que a ANP não tem nenhum direito sobre Gaza e, portanto, Abbas não é o verdadeiro líder dos palestinos, mas tão somente  de metade deles. Desta maneira, deu a Netanyahu uma ocasião única para sua reeleição. O voto de plebiscito da  Assembleia Geral da ONU a favor do reconhecimento da Palestina, ainda que com status de observador, obrigou o Hamas a apoiar o pedido da ANP. E agora Hamas começou a mover-se em direção ao Qatar, Arábia Saudita e Egito, onde estão o dinheiro e a geopolítica e a distanciar-se do Hezbollah, da Síria e do Irã.

Israel. Não podemos nos esquecer que o Hamas é em grande parte uma criação de Israel, que apoiou seu crescimento como maneira de dividir os palestinos e reduzir a onipotência de Yasser Arafat. E as partes, ao mesmo tempo em que se odeiam apaixonadamente, necessitam-se mutuamente. Para Netanyahu, o inimigo ideal é o Hamas que, ao contrário de Abbas, não está interessado em compromissos. Hamas é o inimigo forte que quer que Israel desapareça. Desta maneira, fazendo do Hamas o legitimador da política agressiva de Israel, cunha a ideia de que não há diálogo possível para a paz e, consequentemente, a expansão dos colonatos, a falta de negociações reais, com a alegação de que não há ninguém com quem negociar. Não quer dar nenhum tipo de plataforma a Abbas e o prejudica com a maior frequência possível.

Seria ideal para Netanyahu e para seu extremista Ministro de Relações Exteriores, Avigdor Lieberman ter todos os israelenses voltados para o governo diante dos ataques do Hamas, mostrando os músculos ao concentrar tropas na fronteira com Gaza, prontos para intervir. A Cúpula de Ferro, o sistema israelense para interceptar mísseis, provou sua eficiência, provou que pode ser melhorado e utilizado adequadamente caso Israel seja atacado pelo Irã, agora que já se sabe que seus mísseis não são tão destrutivos como se pensava. Netanyahu também foi capaz de eliminar o chefe militar de Abbas, que era muito bom comandante, mostrando assim a seus eleitores sua capacidade de proteção com grande eficiência. O voto das Nações Unidas pelo reconhecimento de um Estado Palestino foi uma grande derrota para Netanyahu, que decidiu voltar a acender os fogos da discórdia, ao autorizar 3.000 novos assentamentos judeus.

Obama. O Médio Oriente não é a prioridade de Obama. Sua prioridade é a Ásia, para onde vai transferir o grosso dos esforços norte-americanos para fazer frente à China, fomentando o comércio e criando alianças com tantos países quantos seja possível. Os Estados Unidos serão autossuficientes em energia em 2020, graças às novas tecnologias de extração de areias betuminosas e fraturamento de rochas, transformando-se em exportador líquido de energia em 2030. Desembaraçando-se do Iraque e do Afeganistão, o Médio Oriente é cada vez menos uma prioridade. Enquanto o conflito com Gaza estava no auge, de todo modo decidiu ir à Ásia, e dali enviou Hillary Clinton para a região, para encontrar uma maneira de negociar algum tipo de trégua. Obama sabe que não há maneira de levar Netanyahu a nenhuma negociação real, já que ele nunca aceitou o conceito de dois Estados lado a lado. Mas Obama não se pode permitir o perigoso risco de parecer em desacordo com Israel, porque a defesa deste país é um dos grandes (se não o maior) dos estereótipos estabelecidos na mente dos estadunidenses. De modo que está tentando intervir o menos possível, e só o faz quando um conflito chegou a tal ponto que já não é possível ignorá-lo. Assim, depois de ter dito as frases que sempre se ouvem, sobre  o direito de Israel de viver em paz, teve que resolver um problema de grande importância. Washington nunca teve nenhum anal direto com o Hamas, que é considerada uma organização terrorista (ainda que eleitos democraticamente), razão pela qual necessita encontrar um mediador.  Mas Obama não pressionou realmente os europeus para que votassem contra um Estado Palestino na ONU, o que permitiu que países como a Itália ignorassem as pressões israelenses.

Egito. O presidente Morsi vem da Irmandade Muçulmana, outra organização intensamente repudiada por Israel e, portanto, por Washington. Pero Morsi foi democraticamente eleito, a Irmandade Muçulmana também está em Túnis e o Egito continua sendo um líder que não se pode desconsiderar, no mundo árabe.  Desta forma, Clinton pediu ajuda a Morsi e Israel está interessado em estabelecer boas relações com Morsi, como as que tinha com o ex-presidente Hosni Mubarak. O Hamas tem fronteira com o Egito, como única saída para o mundo e Israel tem que ter as melhores relações possíveis com o Egito. Por outro lado, Morsi foi testemunha, com grande prudência, da visita do Emir do Qatar a Gaza, e do fato de que os países do Golfo estão cada vez mais ativos na Palestina e agora na Síria, onde Qatar e Arábia Saudita estão financiando abertamente os mais radicais. Desempenhar o papel de mediador deu a Morsi a oportunidade de recolocar o Egito como um país decisivo na região.

Da mesma maneira, foi uma ocasião de obrigar os Estados Unidos a oferecerem esse mesmo reconhecimento. Uma vez que esta nova legitimidade foi alcançada, Morsi utilizou-a para eliminar um sistema judicial independente (ligado ao regime anterior), e para emitir um decreto segundo o qual suas ações não podem ser julgadas, pondo Egito de novo na velha autocracia dos tempos de Sadat e Mubarak. O que foi algo que os Estados Unidos certamente viram como um desenvolvimento embaraçoso.

Resumindo: De tudo isso, o Hamas saiu reforçado em Gaza porque foi capaz de olhar Israel nos olhos, e Israel não invadiu. Netanyahu vai para as eleições como o tipo duro que consegue proteger Israel, usando diplomacia e paz em vez de invadir Gaza, o que teria afastado ainda mais a comunidade internacional, que não entende as dificuldades existenciais de Israel. Obama conseguiu alcançar a paz e sai deste assunto como aquele que conseguiu obter a mediação e a trégua, podendo assim dedicar-se a seus jogos políticos onde realmente se situa o interesse e a prioridade para os Estados Unidos. Em uma situação com tantos vencedores, há um perdedor: Abbas. O presidente da ANP, que foi deixado de lado em todo este assunto, claramente não pôde fazer nada em Gaza e consequentemente levou os israelenses a sua já conhecida posição: gostaríamos muito de negociar, mas não existe uma representação do povo palestino e obviamente não podemos negociar com o Hamas. Desta maneira, um Estado Palestino, na ótica de Israel, não é viável e continuamos caminhando em um círculo, enquanto os assentamentos israelenses continuam se expandindo, com alguns protestos da comunidade internacional. E quando Netanyahu perdeu muito mais do que o esperado nas Nações Unidas sobre o reconhecimento de um Estado Palestino, de imediato anunciou 3.000 novos assentamentos judeus, para voltar ao estado de enfrentamento.

*Fundador e presidente emérito da agência de notícias Inter Press Service (IPS). Publisher de Other News

Gaza, por Eduardo Galeano

<<Eduardo Galeano>>

Para justificar-se, o terrorismo de estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que a carnificina de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, conseguirá multiplicá-los.

Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua liberdade, seu todo. Nem sequer tem direito de eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar, são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma ratoeira sem saída, desde que o Hamas ganhou de forma limpa as eleições em 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e desde então viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.

São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com péssima pontaria sobre as terras que foram palestinas e que a ocupação israelita usurpou. E o desespero, à beira de uma loucura suicida, é a mãe das ameaças que negam o direito a existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a guerra muito eficaz de extermínio está negando, há anos, o direito à existência da Palestina. Aos poucos, a Palestina cai. Passo a passo, Israel a está apagando do mapa.

Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a desapropriação, em legítima defesa.

Não há guerra agressiva que não diga ser defensiva. Hitler invadiu a Polonia para evitar que a Polonia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Irque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel engole outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. A devoração se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu, e pelo pânico que geram os palestinos à espreita

Israel é o país que jamais cumpre recomendações, nem resoluções das Nações Unidas, o que nunca acata sentenças dos tribunais internacionais, o que burla as leis internacionais, e também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros. Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem à impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente o País Vasco para acabar com ETA, nem o governo britânico pôde devastar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica uma política de eterna impunidade? Ou essa luz verde vem da potência mandachuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais moderno e sofisticado do mundo, sabe a quem mata. Não mata por erro. Mata por horror. As vítimas civis se chamam efeitos colaterais, segundo o dicionário de outras guerras imperialistas. Em Gaza, de cada dez efeitos colaterais, três são crianças. E somam a eles milhares de mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando com sucesso nesta operação de limpeza étnica.

E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense.

Gente perigosa, adverte o outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos incitam a acreditar que uma vida israelense vale tanto como cem vidas palestinas. E esse meios também estimulam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi quem aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada comunidade internacional, existe?

É algo mais que um clube de comerciantes, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos usam quando fazem teatro? Diante da tragédia em Gaza, a hipocrisia mundial brilha uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações vazias, as pomposas declamações, as posturas ambíguas, prestam homenagem a sagrada impunidade. Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mães. A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama uma ou outra lágrima, enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caça aos judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinos, que também são semitas e nunca foram, nem são anti-semitas. Eles estão pagando com sangue uma conta estrangeira

(Este artigo é dedicado aos meus amigos judeus assassinados pela ditaduras latino-americanas que Israel assessorou)

Renunciar a violência para mostrar a boa vontade

(Foto: Ragnar Jensen – ragnar1984/Flickr)

<<Oscar Arias Sánchez*>>

Por mais desolador que pareça, o relato de nossa espécie tem sido escrito com ênfase na violência. Temos medido o passar dos anos com o calendário da força. Pouco são os episódios de conciliação entre todos os seres humanos. Poucas são as épocas de harmonia e fraternidade. No vasto repertório das vivências humanas, raras vezes temos permitido uma oportunidade para a paz duradoura.

A história humana pode ser lida como a tensão entre duas forças, entre o poder dos falcões e das pombas da política. Ao ritmo desse pêndulo temos escrito as passagens mais cruciais da nossa vida coletiva. Há 25 anos, esse pêndulo se inclinou do lado da paz na América Central e pôs fim a 30 anos de enfrentamentos bélicos.

Que características distinguiram nossa história da de tantos outros que também sofrem a dor de um conflito armado? Quanto influenciou o contexto, o momento, os atores ou a sorte na produção do resultado? As circunstâncias que antecederam a assinatura do Plano de Paz são bem conhecidas. Os números de mortos e feridos, desajustados e desaparecidos, povoam as prateleiras das bibliotecas. Mas, há tanto que os dados não coletam! Tanto que desaparece da contagem oficial! Há algo intangível na dor de uma guerra, algo que envenena o ar com a angústia e a consciência insuportável da morte.

O Plano de Paz nasceu no meio deste novelo de frustrações, após o fracasso final dos processos de mediação de alguns governos latino-americanos. Nossas probabilidades de êxito têm a ver com o que, com quem, quando e em que condições o assinamos.

O que assinamos? O Plano de Paz é um documento curto e preciso. Tem como único propósito alcançar a paz e a democracia na região, e não se detém aos detalhes operacionais. Quando existem várias partes em uma negociação, com interesses distintos e frequentemente contraditórios, é vital definir a meta e reduzir o ruído, porque cada parte representa suas contrapropostas e pretende implementar a sua própria agenda.

O grande mérito do Plano de Paz não foi ter sido um documento ideal, e sim ter sido um documento possível, que garantia sua própria sobrevivência ao exigir que as nações celebrassem eleições livres, aperfeiçoando suas instituições democráticas.

Quem assinou? A pesar da pressão de Washington para excluir a Nicarágua das negociações, o Plano de Paz incluiu desde seu princípio o governo de Managua, porque não é possível conduzir uma negociação bem sucedida se não se encontrarem presentes os legítimos interlocutores de um conflito; assim, foi assinado por todos os governos centro-americanos.

Enfrentamos enormes pressões por parte do governo do presidente Ronald Reagan e dos regimes de Mijaíl Gorbachov e Fidel Castro. Porém, defendemos nossa vontade. Não somente porque era nossa, mas porque nenhuma guerra ideológica justifica a morte de pessoas inocentes. Unicamente os signatários decidimos a paz, porque, enquanto um líder deve rodear-se de opiniões, deve escutar argumentos e estudar a crítica, ao final do dia deve decidir em exclusivo com sua consciência.

Quando assinamos? Ao apresentar meu Plano de Paz aos presidentes centro-americanos, compreendi que o tempo corria contra nós. As potências mundiais pressionavam por redobrar a presença militar, enquanto a paciência internacional se esgotava, produto da frustração e desgaste. Ao reunirmos na cidade de Guatemala, em agosto de 87, de alguma maneira entendemos que aquela seria nossa única oportunidade. Saber isto, sentir que a vida de milhões de centro-americanos estava atada ao desígnio de umas poucas horas, nos deu a força que necessitávamos. Desde o momento em que apresentei o Plano de Paz, até o dia em que assinamos, transcorreu pouco mais de meio ano. Por ter dado tempo ao diálogo, talvez pudéssemos terminar rendidos.

A lógica do Plano de Paz era exigir o cessar fogo como condição para dialogar. Renunciar a violência para demonstrar boa vontade. Assim, firmamos um acordo que transformou a vida de milhões de seres humanos. Oxalá os líderes do mundo se atrevam a renunciar a violência como ficha do jogo. Quem sabe se surpreendam da autoridade que tem a palavra desarmada. Quem sabe se assombrem em saber o quanto pode fazer uma pessoa quando tem do seu lado nada mais do que a razão e a verdade.

“A história é um pesadelo do qual tento acordar”, dizia o herói de Ulisses de James Joyce. Durante muitos anos, a humanidade tem tentado levantar-se de um pesadelo de guerra. A violência que alimentou os mitos e inspirou epopeias segue ditando a saga do mundo. Prontamente e com muita frequência, baixamos os braços, miramos e damos a ordem de fogo. Todavia, não há escrito um destino de dor para o homem. Nada há ditado, ainda, para as páginas futuras desta descendência deslumbrante, que até então em meio as armas, é capaz de amar e perdoar, capaz de construir e imaginar.

Os últimos 25 anos na América Central tem sido um instante de quietude, um momento em silêncio à beira-mar. Mas por este momento, por essa quietude, vale a pena viver e lutar. Por fazer da paz a opção principal. Por fazer do diálogo a única saída. Por fazer dos próximos séculos, o final do contínuo pesadelo.

 

* Ex-presidente da Costa Rica 1986-1990/2006-2010 e Prêmio Nobel da Paz 1987

(Texto publicado originalmente em IPS, tradução Diálogos do Sul)